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CARTAS NA MESA
RAPIDINHO
Sorte e azar. Tem gente
que acha que isso decide a vida das pessoas. O Zagalo, por exemplo, que
agora vai treinar a Portuguesa, disse que tudo vai dar certo porque a
frase "Uma Lusa Campeã" tem 13 letras, e 13 é seu número da sorte. Vamos
ver. Mas eu não aposto nem 13 centavos em time comandado pelo Zagalo,
mesmo sabendo que ele testou umas 113 frases parecidas até encontrar uma
que servisse aos seus altos propósitos esotéricos. "Cartas na mesa", aparentemente
um filme sobre jogadores de pôquer, na verdade mostra como "sorte" e "azar"
são palavras tremendamente ingênuas e redutoras quando o que está em jogo
é a vida das pessoas. Ou uma mesa cheia de fichas bem grandes.
AGORA COM MAIS CALMA
Eu tenho uma teoria.
Calma. Não é uma teoria matemática sobre como ganhar no pôquer de forma
infalível. É bem pior. É uma teoria sobre como dividir as pessoas. Pra
mim, existem basicamente dois tipos: as que fazem o que são,
e as que são o que fazem. É uma teoria bastante simples,
como são todas as que fazem algum sentido, apesar de não servirem para
quase nada além de jogar conversa fora com os amigos ou impressionar uma
nova namorada. Mas "Cartas na mesa" merece esse esforço filosófico, pois
é um filme muito, muito bom. Então vamos lá.
As
pessoas que fazem o que são primeiro têm que descobrir o
que são. Para isso, estudam alguma coisa durante dez anos, ou dedicam-se
a uma idéia durante vinte anos, ou freqüentam um psiquiatra durante trinta
anos. Ou simplesmente sabem o que são desde que se conhecem por gente.
Tornam-se, assim, "profissionais" de alguma coisa. Por exemplo: quem é
Bill Gates? É um executivo de uma empresa de software. Quem é Spielberg?
É um executivo de uma empresa de cinema. Quem é Fernando Henrique? É o
executivo de uma empresa falida. Ninguém tem dúvida de que, com maior
ou menos grau de competência (e como esse grau varia...), eles são
essas coisas, são felizes assim e continuarão sendo até
o fim da vida. Ou até que a empresa os demita, possibilidade que todo
bom filósofo deve considerar.
Mike McDermott, o personagem de Matt Damon em "Cartas na mesa" pertence
a esta categoria de gente. Ele é um jogador de pôquer. Sabe disso. Jogar
pôquer é a única coisa que sabe fazer realmente bem, e por isso só sente-se
"vivo" quando está com as cartas na mão, tirando dinheiro de um "pato"
ou treinando para ser campeão mundial de pôquer. Todo o resto é secundário,
o que, infelizmente, inclui sua namorada Jo (Gretchen Mol, tão sensual
quanto um dois de paus numa mão de quatro ases) e o curso de Direito (passaporte
para uma vida respeitável, longe dos quatro ases, ao lado do dois de paus).
Qual é o conflito básico? Mike está tentando afastar-se do que é
para ser algo que não é, ou seja, está fugindo ao seu destino (temerário
e socialmente condenável), para adaptar-se melhor ao grande esquema do
universo e ter uma vida segura e medíocre. "Cartas na mesa" acompanha
a dolorosa jornada de Mike em busca de si mesmo. E isso não tem nada a
ver com azar, e pouco a ver com o tal "vício" do jogo. Mike é tão viciado
pelas cartas quanto Pelé era viciado pela bola.
E a outra categoria de gente? É a categoria das pessoas que são
o que fazem. Eles nunca chegam a descobrir o que são de verdade,
porque estão ocupadas demais fazendo as coisas. Geralmente muitas
coisas diferentes. Elas são versáteis e têm habilidades variadas. Ou,
apesar de ter uma única habilidade, fazem tantas aplicações diferentes
dessa habilidade que parecem ter várias profissões, ou bicos, ou pelo
menos enganam em vários campos de atividade. Querem um exemplo? Este que
vos escreve, que aqui no ZAZ é conhecido por escrever comentários de filmes.
Para quem acha que sou um "crítico de cinema", fica aqui uma advertência:
eu faço crítica de cinema. Notaram a diferença? Eu não tenho a
mínima idéia do que sou. Eu faço. Mas também faço outras coisas. E vamos
parar por aqui, porque isso tá parecendo livro de auto-ajuda.
O brilhante roteiro de "Cartas na mesa", escrito por David Levien e Brian
Koppelman, explora metodicamente o drama existencial de Mike McDermott
e ainda consegue espaço para criar outros ótimos personagens, como Worm,
interpretado por Edward Norton, que não tem qualquer problema existencial
(é um jogador trapaceiro, gosta disso e só faz isso) mas tem gravíssimos
problemas financeiros (deve grana pra meio mundo). Ou Joey Knish, vivido
por John Turturro, que fez do jogo o ganha-pão de sua família, e por isso
nunca arrisca, tornando-se um burocrata do pôquer. Sem contar o Teddy
KGB, de John Malkovicht, e o professor Petrovsky, de Martin Landau. Enfim,
John Dall tinha um grande roteiro na mão, escalou excelentes atores, extraiu
deles personagens de primeira e com certeza trabalhou duro para fazer
de "Cartas na mesa" um filme excepcional. E tem gente que ainda acha que
fazer um bom filme é uma questão de sorte ou azar. Sendo o que faz, ou
fazendo o que é, o importante, para qualquer categoria de pessoa, é fazer
bem feito.
Cartas na Mesa (EUA, 1998). De John Dahl.
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Carlos
Gerbase é
jornalista e trabalha na área audiovisual, como roteirista e diretor.
Já escreveu duas novelas para o ZAZ (A
gente ainda nem começou e "Fausto")
e atualmente prepara o seu terceiro longa-metragem para cinema, chamado
"Tolerância".
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