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O RESGATE DO SOLDADO RYAN RAPIDINHO Sei que essa crítica está atrasada, mas só vi o filme agora. Além disso, ele vai entrar em cartaz outra vez, para ir esquentando a platéia até a entrega do Oscar. "O resgate do soldado Ryan" certamente tem chances em várias categorias técnicas e talvez sobre mais uma estatueta para Tom Hanks. Mas entendo muito pouco dos humores e das tradições da Academia para comentar essa festa. Vamos ao que interessa: o filme. AGORA COM MAIS CALMA Antes de mais nada, vamos fazer de conta que aquele início e aquele fim simplesmente não existem. Além de apelativos e melodramáticos, são dispensáveis. Não fazem falta alguma, nem para entender a história, nem para situá-la historicamente. Talvez sirvam para situar o filme ideologicamente, mas este é apenas mais um motivo para ignorá-los. A não ser que queiramos metralhar o filme sem dó nem piedade, o que não é o caso. Então estamos combinados: a primeira e a última cena não foram filmadas; se filmadas, não foram reveladas; se reveladas, não foram incluídas na montagem final; se montadas, bom, aí vamos ter que esquecê-las. Esqueçam. O
filme começa (em nossa nova versão) na praia de Omaha, durante o desembarque
das tropas americanas no dia "D" da Segunda Guerra Mundial. Você já viu
as imagens que o fotógrafo Robert Capa fez desse desembarque? Imagens
verdadeiras, de soldados e de cadáveres de verdade, mas isso não faz muita
diferença, porque os cadáveres falsos de Spielberg são muito verossímeis.
Mas quem conhece as fotos de Capa imediatamente vai perceber que a sua
influência foi grande nesse filme, e não só nessa cena. Depois dessa fuziliaria toda, é difícil recomeçar o filme, entrar no ritmo da história, e manter o interesse lá em cima.A curva emocional está comprometida. Se Sid Fyeld, famoso analista de roteiros de Hollywood, fosse "consertar" esse roteiro, certamente inverteria a sua ordem, deixando Omaha para o clímax. Mas Spielberg não fez o filme assim tão preocupado com as regras para ganhar o público e, quem sabe, alguns Oscars de lambuja. Ou melhor: NESTE filme que estou comentando, SEM aquelas cenas inicial e final, ele não parece tão preocupado assim. NAQUELE filme, com bandeirinha tremulando, cruzes brancas, lágrimas e continência, está muito preocupado, sim. Preocupadíssimo. Mas esqueçam outra vez o início e fim. Vamos pro meio. Depois do desembarque em Omaha, o filme fica parecido com os episódios da série de TV "Combate". Os leitores com mais de trinta talvez lembrem. Passava bem tarde e era considerada "forte" (dezenas anos antes de "South Park", é claro), retratando o cotidiano da Segunda Guerra sob o ponto de vista da infantaria americana. Aliás, "O Resgate do Soldado Ryan" mostra os alemães da mesma maneira que "Combate" mostrava: são os bandidos. Quase sem rosto, sem emoções, sem humanidade. Spielberg, depois de "A lista de Schindler", não poderá jamais ser acusado de politicamente incorreto, de modo que nem disfarça o seu patriotismo exacerbado, quase doentio. Não estou pedindo alemães com um bom coração; estou apenas pedindo alemães humanos, gente de verdade. (Sem querer antecipar, e já antecipando: os japoneses de "A thin red line" são humanos, são de verdade, e isso faz uma grande diferença). "O Resgate do Soldado Ryan" então caminha para o seu final. É uma caminhada meio sem graça, com cenas que tentam ser comoventes, mas não conseguem. Alguns diálogos são meio arrastados, e os discursos americanóides de Tom Hanks incomodam um pouco. Mas nada que a fotografia maravilhosa, o som poderoso e o talento dos atores (quase todos excelentes) não esconda muito bem. Enfim, dá pra levar a conversa mole numa boa, porque estamos esperando pela "grande cena final", com a presença de Ryan (Matt Damon, sem sal, numa interpretação óbvia de um papel fraco e igualmente óbvio). O que esperamos da grande cena final? Pelo menos tanta adrenalina quanto na cena do desembarque em Omaha. E aí está um problema do filme: a expectativa não se cumpre. A cena é longa, num cenário muito realista, morre gente aos montes, mas, mesmo assim, fica devendo. Não aos outros filmes de guerra: fica devendo a ESTE filme de guerra. Um único momento antológico: quando o soldado americano judeu é morto com uma lenta facada no coração. Há crueza e uma enorme tensão dramática naquela morte muito dialogada e infernalmente anunciada. Já a morte de Tom Hanks e a entrada triunfal dos aviões (todo muito já viu o filme, posso contar à vontade) é um lugar comum dos mais manjados, que geralmente funciona bem como piada, mas no filme funcionou precariamente como drama. E acabou. Claro, tem aquele OUTRO filme, que acaba com o Ryan velho no cemitério, mas este é tão calhorda que a gente já esqueceu. Fazendo as contas, dá
pra considerar "O Resgate do Soldado Ryan" um bom filme de guerra. Se
ele teve alguma pretensão além disso, falhou. A tentativa de considerar
o resgate um ato criticável (algo como: "tantos morreram, tão estupidamente,
por um capricho dos generais, que se preocupam com propaganda") é de uma
infantilidade a toda prova. Até porque, sem dúvida, na lógica da guerra,
a publicidade e a opinião pública dela decorrente são muito mais importantes
que meia dúzia de vidas. Se é pra criticar a guerra, o furo é muito mais
em baixo, e aí Spielberg não tem a coragem de Kubrick, ou de Coppola,
ou até de Mallick. Se tentou fazer "um libelo contra a guerra", também
falhou. Libelo são as fotos de Capa, que dispensam o posterior tratamento
açucarado de Spielberg. O espetáculo de sons e imagens proporcionado pelo
filme, contudo, resiste, e aquela cena inicial (a do NOSSO filme: o desembarque
em Omaha) não vai sair tão cedo da memória de todos os que gostam de cinema.
Carlos Gerbase é jornalista e trabalha na área audiovisual, como roteirista e diretor. Já escreveu duas novelas para o ZAZ (A gente ainda nem começou e "Fausto") e atualmente prepara o seu terceiro longa-metragem para cinema, chamado "Tolerância". |
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