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SHAKESPEARE APAIXONADO

RAPIDINHO

"Quando eu me declarava você ria e, no auge da minha agonia, eu citava Shakespeare", cantou Raul Seixas, imortalizando definitivamente o bardo inglês. Shakespeare é gênio. Shakespeare é pop. Shakespeare é o cara. Shakespeare, no filme de John Madden, está em crise criativa, mas, depois de apaixonar-se e transar com Gwyneth Paltrow, consegue terminar "Romeu e Julieta".

O roteiro de Tom Stoppard e Marc Norman é uma combinação quase perfeita de cultura (há uma preocupação em mostrar como as coisas aconteciam no teatro elisabetano) e curtição (há uma preocupação em divertir o público ao máximo). Os puristas podem se escandalizar com as excessivas liberdades no retrato do mestre, e talvez a geração "Pânico" torça o nariz para a milionésima encenação de "Romeu e Julieta" no cinema, mas para nós, simples mortais, "Shakespeare apaixonado" funciona bem, roda macio, eleva o espírito e auxilia a digestão.


AGORA COM MAIS CALMA

Estou preocupado com o futuro do cinema mundial. Neste final de semana, vi três filmes em vídeo que tinha perdido no cinema: "O principal suspeito", de Ole Bornedal, "Por uma vida menos ordinária", de Danny Boyle, e "Amor alucinante", de Jim Wilson.

E você diria, caro leitor: o que eu tenho a ver com isso? Ou melhor: o que "Shakespeare apaixonado" tem a ver com isso? É muito simples: acho que detectei uma das características mais evidentes do cinema "jovem" (feito por diretores mais ou menos jovens): os personagens estão desaparecendo. Há uma procura alucinada por enredos espertos, por "viradas" narrativas desconcertantes, por boas piadas. Lembram de "Garotas selvagens", que comentei aqui no ZAZ há alguns meses? É o mesmo problema. Os jovens roteiristas, provavelmente influenciados pelo sucesso de "Pulp fiction", tentam construir histórias que estão amarradas não pelas características de quem está dentro dela (o personagem), e sim pelas necessidades de quem está fora (o próprio roteirista). Eu adoro "Pulp fiction", mas acho que há uma certa confusão: não há bom cinema sem bons personagens.

"Shakespeare apaixonado" tem uma coleção completa deles. Começando, é claro, pelo próprio, que está tentando escrever uma peça chamada "Romeu e Ethel, a filha do pirata" e não consegue ultrapassar o título. Não me interessa se o Shakespeare real (se é que existiu um) teve blecautes criativos. O importante é que o personagem vivido por Joseph Fiennes exibe suas dificuldades literárias com muita verossimilhança: o produtor o pressiona, os atores esperam os diálogos, o público quer uma comédia, mas ele está tão apaixonado que tudo isso é secundário. A peça só nasce quando ele consegue transpor seus sentimentos da vida real para o palco, na forma de tragédia. Aliás, a grande sacada do roteiro é justamente discutir o processo de criação através do paralelo entre a história "real" de "Romeu e Julieta" (que é uma ficção, mas tem integridade textual indiscutível) e a história "ficcional" de Shakespeare (que é personagem real, mas continua suscitando intermináveis discussões entre seus biógrafos).

Gwyneth Paltrow, até aqui mais conhecida pelo seu rosto de boneca e físico perfeito, vejam só, mostra que é boa atriz! Essa nem o ex-namoradão Brad Pitt esperava. Seu personagem, uma sensível dama da nobreza que sonha em ser atriz, também é muito bem construído. A futura Julieta enfrenta uma tripla resistência. Primeira: trabalhar no teatro é coisa de pobre (a sua família rica proíbe). Segunda: trabalhar no teatro não é coisa para mulher (a lei proíbe). Terceira: seu futuro marido vai matar Shakespeare se o pegar com ela (portanto, o bom senso recomenda que ela se afaste). Mas ninguém consegue proibi-la de se apaixonar. Primeiro pelo teatro, depois pelo dramaturgo, e, por último, pela liberdade sexual. A cena da transa, apesar de delicada na imagem, é muito quente na significação. Depois daquela noite, tudo será para sempre diferente, o que a própria rainha percebe.

Os personagens secundários (os produtores, os atores da companhia, Marlowe, a rainha Elizabeth e o noivo violento) são interpretados por atores do primeiro time, têm seu espaço adequado e sua própria consistência dramática, fornecendo material para que os roteiristas façam todas as brincadeiras, piadas e reviravoltas que desejarem. Porque - como sabia o criador de Othelo, Hamlet e Rei Lear - ter bons personagens não impede que se tenha um bom enredo. Pelo contrário: ajuda bastante. "Shakespeare apaixonado" é a maior surpresa do ano. Leve, sem perder a carga histórica. Popular, sem abrir mão da inteligência. Engraçado, sem descaracterizar o tom trágico de "Romeu e Julieta". E com um belo final, coerente com todo o resto. Com Oscars ou sem Oscars, certamente é um dos melhores filmes do ano.


Shakespeare Apaixonado (EUA, 1997). De John Madden.


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Carlos Gerbase é jornalista e trabalha na área audiovisual, como roteirista e diretor. Já escreveu duas novelas para o ZAZ (A gente ainda nem começou e "Fausto") e atualmente prepara o seu terceiro longa-metragem para cinema, chamado "Tolerância".

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