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"A TV não será mais a mesma", diz Pedro Bial

Domingo, 07 de abril de 2002, 17h45



Bial apresentou o Big Brother Brasil
(Jorge Rodrigues Jorge/CZN)

Pedro Bial
Especial para a TV Press

Entre as poças d'água da chuva de ontem, o menino arruma cuidadosamente as pedras, ilhas remotas prestes a acolher minúsculos Crusoés. As formigas desembarcam dos dedos infantis e exploram rapidamente todo tamanho mínimo do mundo que habitam agora. Catástrofes se sucedem: maremotos, furacões, incêndios. Os insetos sofrem ao sabor de uma inteligência superior: a imaginação travessa de um ser menino. Sem culpa, portanto sem sadismo, o futuro homem brinca de Deus.

Na imaginação embutida do aparelho de televisão, gente grande de todo o mundo está adorando a brincadeira - a deliciosa ilusão de comandar a sorte de semelhantes confinados entre grades eletrônicas de convivência. Alguns, considerando "bárbaro o espetáculo", vestem os trapos de uma moral defunta e se perguntam como chegamos tão longe.

Não é preciso ir longe para responder. Em 1948, a televisão americana não engatinhava mais. Já estava de pé, invadindo a passos largos lares, olhos e mentes. Com poucos recursos técnicos, a tevê buscava esportes como o boxe - de fácil transmissão - para criar a sua programação. Era tudo ao vivo. Ou melhor, quase tudo. Pois um dos primeiros e maiores sucessos da história da televisão era registrado em película. O programa oferecia o show de "pessoas flagradas no ato de ser elas mesmas". Candid Camera, (Câmara Indiscreta), é talvez o programa, a idéia televisiva de maior longevidade, sobrevive a todas as modas.

A "reality tv" que hoje manda na programação das televisões de todo o mundo é apenas uma descendente da velha Câmara Indiscreta. Com os recursos da tecnologia contemporânea, a pegadinha evoluiu um bocado, indo às últimas conseqüências. E, como por encanto, descobriu-se a pólvora: vivemos numa sociedade exibicionista e voyeurista! Waaalll!

Acuada por tão estarrecedora e surpreendente revelação, a família se refugia entre suas sacrossantas quatro paredes. Pior! Diante da telinha, todos contraem o vício irresistível e se deliciam com a inexistente trama de um grupo de homens e mulheres sem ter o que fazer. Quase ninguém aparece no velório da intimidade. Analistas explicam porque: esta era aquela intimidade que servia de biombo para a mentira e o abuso.

A natureza humana se dá em espetáculo e o que vemos não é mais monstruoso que medíocre. Nossos bichos de sete cabeças se tornam caricaturas, que fazem rir e chorar. Muitos não suportam o auto-retrato, resistindo a reconhecer sua própria imbecilidade na suposta idiotice alheia. Mas, então, resmungam entre soluços os que se têm em alta conta: nós somos isso? Somos. Não apenas isso, mas isso também. Somos uma sociedade menos hipócrita, ao derrubar trôpegos tabus e rasgar os véus da automistificação. Ao escancarar nosso sintomas, nos tornaremos mais saudáveis? É possível, mas o processo não é de cura, e sim de construção de relações mais transparentes e democráticas.

Concebido na Europa, o Big Brother é um microcosmo do ambiente ultra-competitivo dos países desenvolvidos, "cada um por si e Deus contra todos".

Dentro da casa construída em Curicica, no Rio, os jogadores do Big Brother Brasil acabaram por manifestar um desejo nacional e investiram boa parte de suas ociosas horas no trabalho de erguer algum tipo de sistema ético. Este processo culminou com algo inimaginável em versões estrangeiras do formato: um dos participantes se ofereceu em sacrifício para poupar sua parceira.

Mais do que tentar investigar as causas do sucesso do Big Brother, é pertinente observar e identificar suas conseqüências. Geradores de sua própria, e íntima, ficção, os heróis do BBB são personagens de uma trama sem evento nem autor. Ao contrário do que afirmavam conclusões apressadas, eles não são manipulados pela televisão. Eles são os manipuladores, que determinam os ângulos, os enquadramentos, os cortes, o tempo. Uma dramaturgia simples como uma espinha de peixe, onde não acontece nada a não ser a enorme sombra do que sempre pode vir a acontecer.

A televisão não será mais a mesma, o cinema não será mais o mesmo e nem a sociedade. Provavelmente, a febre vai dar e passar e novos produtos irão ultrapassar novos limites nunca dantes violados. As viúvas da hipocrisia irão, mais uma vez e sempre, chiar, espernear, se debater em diagnósticos vãos e datados. Tudo bem, só não dá para ignorar.

 

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