Há cerca de cinco anos, na pesquisa que fazia para sua dissertação de mestrado, a bióloga Fernanda Cangerana Pereira, de São Paulo, notou uma correlação importante entre casos de mortes por neoplasias variadas e distritos industrializados da metrópole.Com base na medição de poluentes divulgada pela Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb), órgão do governo estadual de São Paulo, Fernanda pôde observar que nos lugares em que os níveis de ozônio eram mais elevados predominavam casos de câncer, com maior incidência para as mortes por tumor na laringe.
Fernanda frisa que não é possível a partir desse estudo concluir que o ozônio contribui para o desenvolvimento de neoplasias. Ela adianta que pretende dar continuidade ao trabalho na tese de doutorado que prepara.
A dissertação de mestrado de Fernanda foi defendida em 2000 na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), no departamento de saúde ambiental. Pessoalmente, a bióloga acredita haver mesmo essa relação entre câncer e poluentes.
"Outros fatores que poderiam contribuir para isso não foram levados em consideração, como o tabagismo, mas o estudo mostrou claramente que, nos lugares onde o ozônio prepondera, os casos de câncer estão mais presentes."
Para Fernanda, a poluição do ar, talvez, possa explicar por que a cidade de São Paulo tem um índice alto de pessoas com câncer de laringe.
A pneumologista Sônia Cendon, professora de clínica médica da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), conta que há tempo os efeitos da poluição na saúde preocupam os especialistas. A população, de forma geral, diz a médica, dá pouca importância para o assunto. Especialmente quando os efeitos do ar poluído não são percebidos de imediato no organismo.
Em parte perturbados com essa postura e também por achar que havia uma lacuna no currículo médico a esse respeito, profissionais ligados à Unifesp criaram em setembro um grupo voltado especialmente para avaliar o impacto que as diversas formas de poluição têm sobre a saúde humana. A iniciativa partiu do chefe da disciplina de clínica médica, o professor Antonio Carlos Lopes.
"Para a imensa maioria da população, o assunto preocupa muito pouco. Essa questão ambiental parece chegar até as pessoas apenas com observações sobre o dia, se está frio, calor, se o ar-condicionado funciona ou não", afirma Lopes. "Nós estamos querendo abrir frentes de pesquisas sobre poluição, ver o tema sob a ótica acadêmica."
A médica Sônia diz que é importante falar mais sobre esse assunto, aprofundá-lo com especialistas e com a comunidade leiga. "A poluição está aí, é inegável, e seus efeitos podem ser sentidos em maior ou menor grau, a curto ou a longo prazo." Sua prática diária em consultório, no entanto, aponta o estrondoso crescimento de casos de alergia e problemas pulmonares em pessoas que nunca haviam manifestado antes tais sintomas. "Acho que esse é um bom indício de que a poluição cada vez mais atinge a todos", observa.
Além de Sônia e de Lopes, integram o grupo da Unifesp o pesquisador Alfésio Braga, da USP, com pós-doutorado em epidemiologia ambiental na Escola de Saúde Pública de Harvard; Hélio Ronaldini, pneumologista e professor aposentado da Unifesp; e Luiz Alberto Amador Pereira, pesquisador da USP.
A iniciativa conta com o respaldo da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), ligada à Organização Mundial de Saúde (OMS). Para os representantes brasileiros dessas entidades, a criação do grupo de estudos da poluição é interessante pelo o que deverá oferecer em termos de orientações para as questões de saúde pública relacionadas ao problema. "Temos um compromisso com a comunidade", adianta o professor Lopes, numa clara menção ao fato de que a reunião dos especialistas da Unifesp está conectada com as preocupações da OMS.
Para o organismo mundial, zelar pelo ambiente hoje significa, antes de mais nada, investir em saúde. Documento divulgado no mês passado pela OMS deixa claro que a prioridade do órgão atualmente está voltada para os investimentos em desenvolvimento sustentável e saúde. Com isso, a OMS espera reduzir em milhões o número de mortes de crianças em todo o mundo. Nos ambientes urbanos, de acordo com a organização, a questão ambiental está ainda mais relacionada à saúde pública.
A OMS calcula que pelo menos um terço do número de mortes de crianças com menos de cinco anos no mundo poderiam ser evitadas caso houvesse condições sanitárias e ambientais adequadas nos lugares onde elas vivem, brincam e estudam.
A própria Organização Mundial de Saúde reconhece que um terço da carga global de doenças que atingem todas as faixas etárias no mundo pode ser atribuída a causas ambientais. Na América Latina, especificamente, segundo avaliação da OPAS, essas questões passam necessariamente pela melhoria da qualidade da água oferecida, pela manutenção da qualidade do ar e pela melhor produção, destinação e armazenamento de produtos químicos.
As crianças, segundo o pesquisador Alfésio Braga, merecem mais atenção por estarem mais expostas aos efeitos da poluição de forma geral. Por consumirem, proporcionalmente, mais ar do que os adultos e por ingerirem também proporcionalmente mais água e alimentos, elas são mais vulneráveis aos problemas ambientais, de acordo com Braga. Outro fator que contribui para essa exposição maior é o seu sistema imunológico menos desenvolvido. Crianças têm ainda mais contato com ambientes externos, onde correm maior risco de contaminação por agentes químicos, alerta o epidemiologista da USP.
O médico sanitarista Luiz Alberto Amador Pereira explica que primeiramente o grupo irá se deter na avaliação das conseqüências da poluição atmosférica no corpo. "É a faceta que mais preocupa, porque a água, por exemplo, pode de alguma forma ser tratada. Já o ar, não. A exposição a ele é inevitável." Além das crianças, Pereira assegura que pessoas com nível socioeconômico mais baixo também são vítimas fáceis da poluição. "São indivíduos que não se nutrem adequadamente e quase não têm acesso aos serviços de saúde."
O ar de São Paulo, segundo dados do laboratório de poluição da USP, recebe anualmente cerca de 3 milhões de toneladas de poluentes - 90% deles são emitidos por automóveis.
O principal poluente em suspensão na atmosfera é o monóxido de carbono, do qual são emitidas 1,9 milhão de toneladas por ano. Suas principais fontes são os carros a gasolina (49%) e os veículos a diesel (28%). Segundo o pneumologista Romaldini, altas concentrações desse poluente prejudicam a oxigenação do organismo, causando diminuição dos reflexos e da percepção visual.
"O monóxido se liga à hemoglobina no sangue, impedindo a conexão com o oxigênio. A pessoa acaba com menor oferta de oxigênio no sangue.", explica Romaldini. Os órgãos que mais sofrem com isso são o coração, o fígado e os pulmões. "Dores de cabeça e cansaço sem outra razão aparente também podem estar relacionadas ao excesso de monóxido de carbono", diz.
O ozônio presente na atmosfera, em contato com poluentes, é o responsável pelo processo irritativo das vias respiratórias. "Ele costuma provocar rinite, ardência nos olhos, laringite e sinusite, entre outros problemas", alerta Romaldini.
Os outros poluentes que contribuem para a impureza do ar na cidade são os hidrocarbonetos (430 mil toneladas por ano), óxido de nitrogênio (450 mil toneladas), óxido de enxofre (130 mil toneladas) e material particulado. No inverno, quando é baixa a ocorrência de chuvas e ventos nas regiões Centro-Sul e Sul do país, a dispersão dos poluentes do ar se faz de forma mais lenta.
Nesse período, aumentam as internações de crianças, idosos e de pessoas que sofrem de asma e bronquite crônica, diz o especialista. No Instituto da Criança, da Faculdade de Medicina da USP, há um aumento de 20% na procura por atendimento em prontos-socorros infantis nos dias em que a concentração de poluentes no ar é maior. Nesses mesmos períodos, a taxa de mortalidade de idosos acima de 65 anos aumenta cerca de 10%.
O ar poluído também pode desencadear arritmias cardíacas em pessoas que nunca sofreram do problema antes. Isso porque a poluição diminui a elasticidade do coração. "Algumas dessas arritmias não são percebidas, mas a longo prazo podem deixar seqüelas graves no organismo", diz o clínico Lopes.
Há cerca de dois anos o Instituto do Coração (Incor) divulgou os resultados de um trabalho relacionado o ar poluído com problemas cardíacos. Nos dias em que os poluentes atingiam maior grau de concentração, o número de indivíduos que procuravam o pronto-socorro com arritmia crescia 7,5%.
Foram constatados nesses pacientes além de alterações na freqüência cardíaca, maior viscosidade no sangue. Essa condição aumenta a probabilidade de formação de trombos em algumas pessoas. Isso porque a poluição, ao ser inalada, provoca no organismo a liberação de certas substâncias que, na corrente sangüínea, podem favorecer a formação de coágulos.
O câncer de mama também parece estar de alguma forma associado à inalação de ar poluído. Segundo a bióloga Fernanda Cangerana Pereira, certos tipos de poluentes se comportam no organismo de forma similar ao estrógeno, hormônio feminino. A exposição à substância pode desencadear o aparecimento da doença em certos indivíduos. A questão agora, que mobiliza os especialistas da Unifesp, é saber que impacto os poluentes podem provocar em organismos plenamente saudáveis.