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KUNDUN
RAPIDINHO
Já disse e reafirmo:
é bobagem cobrar compromisso histórico de um filme. Cinema conta histórias,
e não faz História. Mas "Kundun" precisa ser compreendido a partir do
objetivo de Scorsese - contar a vida do atual Dalai-Lama mexendo o mínimo
possível na ordem e na importância dos seus episódios biográficos, de
modo a proporcionar ao espectador uma visão ao mesmo tempo artística (boa
fotografia, boa música, boa direção de arte) e documentária (roteiro "duro",
quase didático) do líder exilado do Tibet, nação sob o domínio da China
desde a década de 50.
Para tanto, alguns cuidados foram tomados: o próprio Dalai-Lama forneceu
os dados fundamentais para a roteirista Melissa Mathison; o elenco é constituído
de não-atores (ou atores desconhecidos); a emoção - combustível de 9 entre
10 bons filmes - é racionada, contida, racionalizada, contextualizada.
Scorsese sabia que este filme não tinha grandes chances no mercado, mas
não se intimidou com isso. Cumpriu seu objetivo, divulgou a causa tibetana
ao mundo, transformou-se quase num relação públicas do décimo-quarto Dalai-Lama
e, agindo assim, abriu mão do componente autoral do espetáculo que encenou.
Scorsese , conscientemente, ficou pequeno, quase invisível, frente à imensidão
das montanhas do Tibet e da história terrível que elas escondem. E, às
vezes, a humildade é a maior prova da grandeza de um homem.
AGORA COM MAIS CALMA
Enquanto Scorsese filmava
Kundun, Jean-Jacques Annaud
filmava Sete anos no Tibet, que
tive oportunidade de comentar aqui no ZAZ há quase um ano. Não gosto de
comparar filmes, mas, mais uma vez, aqui parece ser inevitável. "Sete
anos no Tibet" é um filme falhado, capenga, porque não fez uma opção óbvia:
de quem é a história - do alpinista vivido por Brad Pitt ou do Dalai-Lama?
Annaud tentou misturar as duas, e o que se viu foi uma série de cartões
postais do Tibet misturada com um álbum de figurinhas do Brad Pitt. Filme
descartável e dispensável.
Scorsese não cometeu o mesmo erro. Sua opção é uma, e apenas uma - contar
a vida do Dalai-Lama e, através dela, a história recente do Tibet. Fez
uma espécie de "áudio-visual" clássico, uma peça de propaganda institucional
disfarçada, que reúne elementos cinematográficos (fotografia e música,
principalmente) de primeira qualidade, mas não utiliza no roteiro os elementos
óbvios da estruturação dramática de um filme.
Acho que ele estava com vontade de respeitar e agradar ao cliente. Sabendo
quem era o cliente, dá pra entender bem a opção de Scorsese. Outra comparação
que pode aparecer é entre "Kundun" e "A última tentação de Cristo", do
próprio Scorsese . Mas aí, claramente, Scorsese não tinha cliente. Assim,
fica muito difícil julgar "Kundun" sob os critérios tradicionais, ou procurar
no filme méritos e falhas cinematográficas. Partindo do princípio que
a história do Dalai-Lama está bem contada (e não tenho elementos para
contestá-la), o resto é lucro.
Para Scorsese , o importante era que o espectador, ao sair do cinema,
compreendesse melhor o que aconteceu àquele País. Ao mesmo tempo, era
importante que o espectador não dormisse durante a aula, e por isso os
elementos plásticos tinham de ser poderosos. Para mim, foram. Para muitos,
talvez não sejam tão fortes assim, e o sono será inevitável. Bons sonhos.
Qualquer espectador de "Kundun", é claro, terá o direito de contestar
historicamente o filme de Scorsese. Ou, pelo menos, cobrar uma visão ainda
mais geo-política do processo de invasão e dominação chinês, ou da real
situação do maioria do povo tibetano (que certamente não era das melhores).
Ou, quem sabe, pedir que Scorsese corte aquela cena em que o pequeno Dalai-Lama
"lembra" da dentadura de seu antecessor, escondida numa caixa, único momento
em que o filme ratifica o caráter divino (ou pelo menos místico) do seu
protagonista. Mas, pensando bem, o que é um pequeno milagre, uma pequena
revelação, ou um pequeno exercício de percepção extra-sensorial, perto
dos gigantescos milagres cristãos, que o cinema encena a cada ano, cada
vez com maior verossimilhança e apuro técnico?
Scorsese tinha esse direito, e o utilizou de forma discreta. "Kundun"
é um filme estranho, quase uma excrescência na filmografia de Scorsese.
O cineasta de "Caminhos perigosos" e "Taxi driver", que nos ensinou algumas
coisas importantes sobre a violência e a crueza do mundo em que vivemos,
parece estar procurando alternativas para essa realidade que tão cruamente
retrata.
Na semana passada, o Dalai-Lama deixou-se fotografar ao lado de um sorridente
ACM, símbolo máximo das tortuosidades políticas de nosso país e tão autoritário
quanto Mao Tsé-Tung. Mas o que sabe o Dalai-Lama de ACM? Provavelmente
nada. Desconhecer é perigoso. Conhecer sempre é melhor. Se Sua Santidade
tivesse assistido a um "áudio-visual" de longa-metragem sobre ACM, feito
com a mesma honestidade de "Kundun", certamente escaparia daquela foto.
Alguém aí se habilita a filmar esse épico?
Kundun
(EUA, 1997). De Martin Scorsese.
Dê sua opinião ou cale-se para sempre
Carlos
Gerbase é
jornalista e trabalha na área audiovisual, como roteirista e diretor.
Já escreveu duas novelas para o ZAZ (A
gente ainda nem começou e "Fausto") e atualmente
prepara o seu terceiro longa-metragem para cinema, chamado "Tolerância".
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