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O TROCO
RAPIDINHO
Violência. Morte. Sadismo.
Tortura. Vingança. Sangue. Muito sangue. Quem não sabe que tudo isso é
matéria-prima do cinema há mais de um século? Inclusive do bom cinema.
Obras-primas foram construídas com estes ingredientes e resistem, incólumes,
à passagem do tempo. "O falcão maltês", "O poderoso chefão", "Taxi driver",
"Laranja mecânica" e tantos outros filmes maravilhosos contêm cenas de
assassinato, estupro, mutilação e demais selvagerias que acompanham a
humanidade desde que um macaco feioso usou um osso para bater em seu inimigo
(que o chamou de feioso e, portanto, mereceu morrer, na ótica do feioso).
Kubrick fez filmes violentíssimos. Coppola, Scorcese e Huston também.
Será que todos esses caras estão errados? O problema da violência no cinema
não está na sua presença (ou não) na imagem projetada na tela branca e
imaculada. O problema está na presença (ou não) de um autor na organização
da violência que será projetada na tela. Organização que contém pelo menos
dois aspectos essenciais: um de ordem ética e outro de ordem estética.
O problema de "O Troco" é, portanto, muito simples: onde está o autor?
Ele é Brian Helgeland, que co-escreveu o roteiro e dirigiu, até desentender-se
com o astro Mel Gibson; ou é o próprio Gibson, que produziu, demitiu Helgeland
no meio do caminho e aprovou o corte final?
"O Troco" não tem alma. O sangue de "O Troco" corre, mas não emociona.
A estética de "O Troco", que procura o "noir", esbarra na sua ética, que
procura um niilismo de fanzine punk, mas não tem a sua inocente honestidade.
A violência de "O troco" não é fascista, nem gratuita. Ela é simplesmente
vazia.
AGORA COM MAIS CALMA
Um astro como Mel Gibson
tem muito poder. Pode, inclusive, dirigir seus próprios filmes (e o fez,
demonstrando algum talento). Pode, também, escolher diretores e roteiristas
para seus filmes. Em "O Troco" escolheu o roteirista do brilhante "Los
Angeles - Cidade Proibida", Brian Helgeland. E fez mais: disse que Helgeland
iria dirigí-lo. Imagine a responsabilidade de um diretor que estréia
comandando Mel Gibson! Mas alguma coisa deu errado. Muito errado. Helgeland
abandonou o projeto (ou foi afastado dele) e Gibson refilmou muitas cenas
(ao que parece, inclusive a final).
Isso explica a constante oscilação do filme, que vai do "noir" clássico
(em que a única moral é continuar vivo sem perder a "classe") até o mais
rasteiro moralismo hollywoodiano (em que a única moral é que o mocinho
não tem "classe", mas mata todo mundo porque é mais bonito). "O Troco"
tem qualidades cinematográficas: fotografia climática, boa montagem, personagens
conflituados e algumas boas piadas no roteiro. Tem, inclusive, o que falta
ao igualmente violento "Vidas em jogo": capacidade de convencer ao espectador.
"O Troco" tem uma galeria completa de vilões, a saber: a) ex-parceiro
traidor e sádico; b) garota oriental "dominatrix" e seus parceiros da
máfia chinesa; c) gangsters do "sindicato" de Chicago, incluindo 3 (três)
chefões diferentes; d) dois policiais corruptos; e) alguns traficantes
de menor expressão. "O Troco" também tem um herói disposto a riscar, sem
dó nem piedade, todas as alternativas acima. O que "O troco" não tem?
Um autor. Será que precisa?
Depende. Quem quer apenas a diversão descerebrada e a volência catártica
ficará satisfeito com "O Troco". Quem quer um pouco mais ficará decepcionado,
pois perdeu-se uma boa oportunidade de fazer um filme sobre a violência,
em vez de simplesmente apoiar-se nela para conquistar boas bilheterias.
"O Troco" tem ecos de um filme importante e audacioso, "Crash" (de David
Cronenberg) por dois motivos: a presença da atriz Deborah Kara Unger e
uma certa ritualização da violência, associada ao prazer e ao sexo. A
diferença é que "Crash" tem um autor (odiado ou adorado, mas sempre um
autor), enquanto "O Troco" tem um astro-produtor que mudou as regras no
meio do jogo.
Uma última reflexão sobre a violência no cinema: nos Estados Unidos, "O
Troco" recebeu a classificação "R" ("Restricted", o que significa que
adolescentes com menos de 17 anos só entram no cinema acompanhados dos
pais ou responsáveis). Acho que tá certo. No Brasil, a censura é 12 anos!
O filme, além de conter cenas de assassinato a sangue-frio e tortura,
tem seqüências explícitas de sado-masoquismo e imagens bastante realistas
de uma viciada em heroína. Tem alguma coisa errada com essa classificação.
E aposto que ela tem razões econômicas: como a maioria dos espectadores,
hoje, é de adolescentes freqüentadores de "shopping", limitar a sessão
para maiores de 18 anos é fator negativo importante para a bilheteria.
Tanto "O Troco" quanto "Pânico 2" são filmes para adultos, ou pelo menos
para jovens com mais de 16 anos. Se a censura classificatória não for
séria, brevemente os paladinos da moral e dos bons costumes trarão exemplos
de crianças de 12 que se deixaram "influenciar" por esse tipo de filme
e descarregaram uma 12 de cano cerrado nos amiguinhos. E eles não estarão
de todo errados.
O
Troco (EUA, 1998). De Brian Helgeland (ou de Mel Gibson?).
Dê sua opinião ou cale-se para sempre
Carlos
Gerbase é
jornalista e trabalha na área audiovisual, como roteirista e diretor.
Já escreveu duas novelas para o ZAZ (A
gente ainda nem começou e "Fausto") e atualmente
prepara o seu terceiro longa-metragem para cinema, chamado "Tolerância".
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