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DE OLHOS BEM FECHADOS

RAPIDINHO

Já li pelos menos quinze comentários sobre De Olhos Bem Fechados. Psiquiatras, sociólogos, filósofos, cineastas e, é claro, críticos tradicionais, todos tentaram abrir os olhos do público para a última obra de Stanley Kubrick. Os textos variam da adoração sem restrições à decepção completa, passando pelas tradicionais etapas intermediárias, como "faltou cortar mais um pouquinho", ou "aquela cena da orgia é muito exagerada". Não pretendo fazer uma meta-crítica, mas é inevitável notar que poucos filmes desta década geraram tanta discussão, tanta polêmica e tanta confusão. O legado de Kubrick não é transparente, nem cristalino. Ele gostava de incomodar, de perguntar, de desafiar o público. Em "De olhos bem fechados" conseguiu mais uma vez. O que se pode pedir mais?
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AGORA COM MAIS CALMA

A crítica mais radical a "De olhos bem fechados" - e, ao mesmo tempo, a mais mesquinha - partiu de um cineasta (aliás, talentoso e competente): Arnaldo Jabor. Ele diz que o problema do filme é que o seu diretor, casado com a mesma mulher há muitos anos, é reprimido e não entende de sexo. Isso ultrapassa a velha cretinice de confundir autor e obra e chega às raias da idiotia. Quem fez "Laranja Mecânica" é reprimido? Quem fez "Lolita" não entende de sexo? Eu adoraria ser tão reprimido e ignorante quanto Kubrick.

"De olhos bem fechados" é um filme denso, meticuloso e extraordinário sobre um homem com dor de corno. Um homem classicamente reprimido, que tem pouca experiência sexual e está procurando um novo sentido para a sua vida (que, é claro, não existe). É, na verdade, um filme de enredo simples, mas que se recusa a ser didático, pois trata de sentimentos ambíguos, que a literatura costuma retratar com mais profundidade e correção.

O intraduzível título original, "Eyes wide shut", é uma referência óbvia ao mundo dos sonhos, do inconsciente, que, de repente, se aproxima perigosamente do cotidiano careta de um casal. E abre caminho para uma infinidade de interpretações. Mas a filosofia, a psiquiatria, a sociologia e a semiologia que me perdoem: no fundo, "De olhos bem fechados" é a milionésima história de vingança que o cinema coloca na tela. Por mais que procuremos explicações sofisticadas, o que move o personagem de Tom Cruise (como sempre, um bom ator, mas prejudicado pela preocupação em ser galã) é o desejo de dar o troco na mulher (Nicole Kidman, meio "over", depois falo mais sobre ela). O nosso amigo fã de "Pânico 2" não terá qualquer problema em compreender e se emocionar com a história. Como sempre, Kubrick dá a este espectador motivos mais do que suficientes para não se decepcionar.

Kubrick investe no espetáculo. A orgia, exagerada e inverossímil, lembra bastante algumas alegorias de "Laranja Mecânica". É uma vingança de bom tamanho: contra a sensível confissão da esposa, que fala uma atração não concretizada no passado, o marido participa de um festim erótico com centenas de participantes mascarados. É uma pena que, em vez do anódino Tom Cruise, não entrou naquele castelo Malcom Macdowell, o Alex de "Laranja Mecânica". Aí sem seria divertido! Teríamos uma vingança de macho... Mas este seria outro filme, explicitamente feminista. Kubrick não gostava de obviedades. A esposa semi-fiel vivida por Nicole Kidman é a personagem mais interessante do filme. Ela é fiel no mundo real (tanto que, mesmo bêbada, recusa a cantada do húngaro na festa), mas dá suas escapadinhas no mundo da imaginação. Ela e toda a torcida do Flamengo, é claro.

Mas Kidman, depois de fumar um baseado, faz uma confissão explícita: no passado, desejou um homem e seria capaz de arriscar tudo por uma noite de amor com ele. Arriscar tudo já é uma tarefa para a desesperada torcida do Botafogo, mas, até aí, ainda não temos novidade alguma. Agora, ter um marido tão careta que transforma essa confissão banal num terremoto destruidor é o tipo de carma que só a trágica torcida do Fluminense conhece bem. Pobre esposa: relegada à terceira divisão de seu leito conjugal, pode apenas esperar a volta do marido, metido em jogos importantes e espetaculares no estrangeiro.

Nicole Kidman é bastante irregular. Começa bem, tirando a roupa e sentando na privada com muita classe, mas sua bebedeira na festa é muito óbvia. Quem viu Ingrid Bergman no início de "Interlúdio" sabe do que eu estou falando. Na cena do baseado, ajudada pelos belos diálogos, tenta mostrar-se sem freios ou inibições, mas também escorrega no "over-acting". No meio do filme, praticamente desaparece, mas recupera-se na cena final da loja de brinquedos, em que tudo funciona magistralmente. É sua a última frase do filme, dita de modo perfeito, conciso e muito dramático. Kidman tem tudo para ser uma grande atriz, basta que lembre (como o maridão), que sua beleza nem sempre ajuda na interpretação.

Talvez este seja o único erro de Kubrick em "De olhos bem fechados": confiou demais nas "personas" de seus atores, esquecendo de investir mais fortemente nas sutilezas dos personagens. Através do personagem de Cruise, Kubrick mostra, com seu habitual bom humor, a generosa oferta de sexo neste final de século.

Vejamos: na festa inicial, duas modelos propõem uma rapidinha; no velório de um cliente, a filha do falecido diz estar apaixonada por ele; numa esquina, uma prostituta maravilhosa propõe um transa comercial; num bar, seu amigo pianista consegue a senha para uma orgia sensacional. Por mais bem apessoado que seja Mister Cruise, nem o Mister M. explica toda essa facilidade. O truque de Kubrick é exagerar o conteúdo mantendo a forma sempre restrita ao realismo. Seu objetivo (alcançado, mas nem sempre compreendido) é fazer o filme navegar entre o plano consciente e o sonho, mostrando o conflito freudiano clássico entre nossos instintos e os limites impostos pela sociedade. Resumindo: continua sendo uma história de vingança de um homem com dor de corno, mas contada com sofisticação visual e muita ironia.

"De olhos bem fechados" é uma "Laranja mecânica" às avessas. Enquanto o Jovem Sem Escrúpulos/Mcdowell, marginal e perturbador da ordem, era reprimido pelo estado até ser lobotomizado (sem sucesso total: vide a cena final), o Respeitável Médico/Cruise, integrado e construtor da ordem, é convidado pela sociedade a um exercício de catarse sexual (também fracassado: ele não transa com ninguém). A civilização quer apenas manter as engrenagens girando, e para isso precisa administrar alguns conflitos na velha carroça, puxada por mulas cegas, que nos levam a lugar nenhum. Mas quem liga? Ainda podemos ir ao cinema.


De Olhos Bem Fechados (Eyes Wide Shut, EUA, 1999). De Stanley Kubrick.

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Carlos Gerbase é jornalista e trabalha na área audiovisual, como roteirista e diretor. Já escreveu duas novelas para o ZAZ (A gente ainda nem começou e "Fausto"). Atualmente finaliza seu terceiro longa-metragem, Tolerância, com Maitê Proença e Roberto Bomtempo.

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