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Kubrick encena a opereta do desejo em De Olhos Bem Fechados
De Olhos Bem Fechados, última produção do consagrado cineasta norte-americano Stanley Kubrick (1928-1999) mergulha Tom Cruise e Nicole Kidman em uma trama que fala de desejo, casamento e fidelidade.
O filme que abriu a 56ª Mostra Internacional de Cinema de Veneza – com a presença do casal – é uma adaptação bastante fiel do romance Traumnovelle, escrito em 1926 pelo austríaco Arthur Schnitzler (1862-1931) e ainda inédito no Brasil.
De Olhos Bem Fechados (Eyes Wide Shut) não atualiza o enredo do “romance onírico” de Schnitzler para os nossos dias. Kubrick e o co-roteirista Frederic Raphael pegaram a contramão: é a Nova York e sua beautiful people contemporânea que é retratada como se fosse a Viena decadentista da virada do século passado – cenário do livro.
Esse entorse inesperado é a marca do gênio de Kubrick e uma das razões que fazem do filme uma obra excepcional. Desde a primeira cena – uma incrivelmente bela Nicole Kidman se despindo ao som de uma valsa –, o espectador é conduzido numa viagem atemporal pelos porões onde latejam nossas pulsões sexuais.
De Olhos Bem Fechados começa como uma leve e maliciosa opereta de Franz Léhar. A trilha sonora, os nomes de alguns personagens, o clima de interminável festa, o charmoso dândi húngaro que tenta seduzir a personagem de Kidman, tudo lembra os doces folguedos do apagar das luzes da belle époque no Império Austro-Húngaro – ainda que o filme se passe na metrópole norte-americana, reconstituída em plena Londres, nos estúdios Pinewood.
À medida que o casal formado pelo Dr. William Harford (Tom Cruise) e sua mulher, Alice (Kidman), vão se embrenhando em seus desejos recalcados, porém, o tom da narrativa fica sombrio, a música torna-se dissonante e o flerte burlesco cede o passo para a tragédia expressionista com toques operísticos.
A mudança acontece quando Alice confessa ao marido ter desejado um jovem oficial da Marinha durante o verão anterior. Apesar de Alice não consumar a traição, a perspectiva da infidelidade começa a perseguir Harford, que parte para uma longa jornada noite adentro, em busca de uma espécie de vinganca redentora.
O que poderia ser uma rasa história de traição e posterior redenção ganha na tela a densidade de uma aguda reflexão sobre a hipocrisia do casamento e a natureza do impulso sexual.
Pode a monogamia subjugar o desejo? É possível trazer à tona as mais inconfessáveis fantasias sexuais e voltar depois para o abrigo seguro da felicidade conjugal? De Olhos Bem Fechados enche a cabeça do sujeito sentado no escuro da sala de projeção com estas e outras indagações. Como grande artista que foi, Kubrick evita a palavra final. Na valsa da libido, insinua ele, cada um marca o compasso que conseguir.
(Roger Lerina - Agência RBS)
Versão integral, sem lendas
A versão de De Olhos Bem Fechados que chega ao público brasileiro não contém a manipulação digital que encobriu por 65 segundos as cenas mais "tórridas" da famosa orgia de pares mascarados, o ápice das aventuras da longa noite de William Harford. As cenas se restringem a nus frontais femininos e à exibição de coitos gélidos que não mostram os órgãos sexuais dos parceiros. É uma grande ironia que as sequências que denunciam o olhar avassalador de Kubrick sobre a natureza "mascarada", reprimida e escamoteada da verdade interior (não só do sexo e do desejo) necessitassem dessa assepsia para chegar ao público americano.
Uma bacanal gélida e mecânica oculta visão avassaladora de Kubrick sobre desejo e repressão
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Quem quiser olhar pelo buraco da fechadura de um dos criadores mais avessos aos idílios com a mídia pode esperar por De Olhos Bem Abertos, que será lançado no Brasil pela Geração Editorial. O relato do co-roteirista Frederic Raphael sobre seu relacionamento com Kubrick e as influências do mestre são um bom cartão de visitas para entender em parte sua personalidade obsessiva e perfeccionista.
As lendas e especulações que cercaram a derradeira obra de Kubrick não só caem por terra como soam ridículas diante da proposta do filme. Cruise vestido de mulher, cenas sadomasoquistas, Alice viciada em heroína, a orgia "mais ousada" já colocada em película, cenas de sexo quentíssimas entre o casal mais bem pago de Hollywood, todas essas bobagens podem ter funcionado bem para vender o peixe antes da estréia. Mas o conteúdo supostamente "polêmico" não existe. Nicole fica nua por alguns segundos, o casal se acaricia durante breves momentos, e é só.
Toda a jornada posterior de Bill Harford é uma sucessão de fracassos, de desejos não consumados, onde a tensão sexual está à flor da pele mas jamais serve de pretexto para a trama. Ela é o subtexto particular que envolve a platéia em um arrebatamento onírico, carregado de nuances e sutilezas.
Kubrick morreu quatro dias depois de exibir aos produtores da Warner a primeira cópia do filme. Perfeccionista compulsivo, a ponto de estender as filmagens a dois anos, exigir dedicação total de Cruise e Kidman ao projeto e repetir exaustivamente algumas cenas, é bem provável que o diretor burilasse a obra antes de chegar ao público. Mesmo sem os retoques que tornariam De Olhos Bem Fechados uma obra mais acabada e enxuta, o filme é um legado essencial para entender o gênio de Kubrick, a unicidade que percorreu obras tão díspares como 2001, Dr. Fantástico, Glória Feita de Sangue, Nascidos para Matar, O Iluminado. Artista dedicado a demolir concepções enraizadas ao filmar o descontrole, a loucura, a ambição e as fraquezas humanas, o canto do cisne de Kubrick voltou suas lentes para a alcova para desnudar a última trincheira de sua filmografia, apenas esboçada em Lolita: a incógnita do desejo.
(Cássia Borsero)
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