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Último
tratamento do roteiro
Maio de 1999
CENA
1
INTERIOR - casa de Júlio/escritório - DIA
(9h) Créditos iniciais intercalados
Júlio, 40 anos, está no escritório de sua casa, sentado à frente de uma
mesa que abriga um computador poderoso, scanner, impressora, gravador
de CD-ROM, tudo ligado. A sofisticação do equipamento contrasta com pilhas
vacilantes de badulaques que entopem o resto do quarto: revistas velhas,
caixas, fotos amarelecidas, alguns filmes super-8, livros e fitas de vídeo.
Uma pequena televisão, desligada, também está sobre uma das estantes.
O ambiente é de semi-penumbra com a janela e a porta fechadas. Apenas
um pequeno abajur está ligado. Num canto da mesa, precariamente equilibrado,
um projetor super-8 roda um rolinho de filme. A imagem chega a um dos
poucos espaços livres na parede.
Júlio manipula uma pequena câmara de vídeo sobre o tripé, apontada para
a imagem do filme super-8. Um fio sai da câmara e vai até o micro. Numa
janela do monitor, vemos a mesma imagem em movimento que está na parede.
O filme, com cores desmaiadas e a sujeira típica dos super-8 antigos,
mostra uma manifestação dos Sem Terra, em 1978, no interior do Rio Grande
do Sul.
Entre as centenas de agricultores, a câmara descobre Márcia, 18 anos,
vestindo uma camiseta de Che Guevara. Ela percebe que está sendo filmada
e sorri, encabulada. Seguem-se outras imagens de Márcia (tomando chimarrão,
caminhando com os manifestantes, assistindo a um discurso, etc.). Na última
delas, está abraçada em Júlio (aqui com 20 anos). Os dois abanam para
a câmara, sorridentes. Júlio, em seu escritório, também sorri. O filme
termina.
Júlio desliga o projetor, confere alguma coisa no monitor e clica o mouse.
Abre um pouco a janela, iluminando mais o escritório. Júlio, sempre olhando
para o monitor, clica o mouse mais algumas vezes até que a primeira imagem
de Márcia volta a aparecer. Digita sobre a imagem "Encruzilhada Natalino".
Clica o mouse. A imagem se move por alguns momentos, devidamente identificada.
Júlio clica outra vez, interrompendo a gravação e a imagem do filme no
monitor.
Pega uma caixa cheia de fotos antigas e começa a separar algumas, colocando
sobre a mesa. Examina por algum tempo uma foto de Márcia de biquíni, sorri
e coloca de volta na caixa. Leva uma das fotos para o scanner. Aciona
o aparelho. Logo uma foto de Márcia (ainda bem jovem, desta vez de minissaia
ou bermuda) aparece na tela do monitor. Outras fotos de Márcia se sucedem,
como se fossem digitalizadas logo a seguir.
Foto de Júlio com sua câmara.
Foto dos dois juntos, felizes.
Foto de Márcia como "bixo" da universidade, toda pintada e lambuzada.
Foto de Júlio com toga na formatura de Jornalismo. Foto de Júlio na estação
rodoviária, entrando num ônibus com destino a uma cidade muito distante
(pesquisar qual linha era a mais longa).
Foto de Júlio com sua câmara, em local árido. Júlio de barba, meio sujo,
com um chapéu na cabeça. Fotos das viagens de Júlio, por vários estados,
retratando as "injustiças sociais" do Brasil: pobreza, manifestações de
trabalhadores e estudantes, repressão policial, crianças subnutridas,
etc.
Fotos do nascimento de um bebê; o bebê sendo amamentado por Márcia; Márcia
trocando as fraldas do bebê; o bebê dormindo.
Foto de Márcia de toga na formatura de Direito, perto de uma "estátua
da Justiça".
Fotos de Guida com uns quatro anos, indo para o colégio.
Foto de Márcia em sua sala no escritório, com uma montanha de papéis sobre
a mesa e uma cara de resignação.
Foto de Júlio, em casa, com seu primeiro computador (Apple II ou semelhante
- pesquisar).
Foto de Júlio, Márcia e Guida (com uns 4 anos) numa manifestação. Os três
vestem camisetas das "Diretas já".
Júlio sentado numa mesa de reuniões com os executivos da revista. Ambiente
"clean", moderno (ou seja: cafona). Algumas fotos e revistas em cima da
mesa, mas longe da câmara o suficiente para não identificarmos o gênero
da publicação. Terminam os créditos iniciais. Toca o telefone, interrompendo
Júlio. Ele atende e enquanto fala, dá alguns cliques com o mouse, salvando
suas últimas ações.
JÚLIO: Alô. (...) Não... Mas tu não disse que... (...) Tá, eu não
vou discutir... (...) Tudo bem. Tô indo praí. (desliga, irritado)
CENA 2
INTERIOR - escadaria do fórum - DIA (12h)
Márcia, 37 anos, de toga, com uma pilha de processos na mão, sai do fórum,
acompanhada de dois outros advogados. Teodoro, 30 anos, vestindo um terno
pequeno demais para ele, nervoso, está esperando. Aproxima-se de Márcia.
TEODORO: Doutora Márcia.
MÁRCIA: (sorrindo) Ôi, Teodoro. A sessão só começa às duas.
TEODORO: É que... Eu queria falar com a senhora.
MÁRCIA: Pode falar.
Teodoro hesita um pouco, olha para os advogados e acaba falando:
TEODORO: Eu... Quero contar a verdade.
O sorriso de Márcia se desmancha, mas ela logo recupera o tom confiante.
Os dois advogados sorriem para Márcia e se afastam.
MÁRCIA: Pode ficar tranqüilo, Teodoro. (pausa) Eu tenho certeza
que vai dar tudo certo.
Teodoro continua olhando para Márcia, angustiado.
TEODORO: Pode ser. Mas eu queria que a senhora soubesse o que aconteceu,
o que aconteceu de verdade.
MÁRCIA: Teodoro, eu já expliquei: eu estou alegando legítima defesa,
e eles querem provar que tu atirou primeiro. Só que eles não podem fazer
isso, não tem como fazer isso. Só se tu confessar. E aí a tua esposa e
os teus filhos vão te visitar na cadeia, todo santo domingo, por muitos
anos. É isso que tu quer?
TEODORO: Eu só quero contar o que aconteceu de verdade. Pelo menos
para a senhora.
MÁRCIA: Que diferença isso faz?
Teodoro não responde. Márcia suspira fundo, cansada, e fica alguns segundos
olhando para Teodoro.
Veja também:
Tratamentos do roteiro
Primeiro Tratamento - Dezembro de 1995
Volta
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