Musah Amer Odeh, o embaixador palestino no Brasil, apresentou suas credenciais ao presidente Fernando Henrique Cardoso em 1995, pouco após a assinatura dos acordos de Oslo. Nascido na vila de Dura, na Cisjordânia, há 54 anos, está exilado desde a Guerra dos Seis Dias, em 1967. É formado em filosofia pela Universidade de Damasco, na Síria, e já ocupou cargos diplomáticos na Nicarágua e nas Filipinas.
O que o senhor achou da atuação da comunidade internacional e do governo brasileiro durante a recente escalada de violência no Oriente Médio?
Há muito apoio à nossa causa, mas não o suficiente. Até agora nada foi feito para parar a agressão israelense aos nossos civis, o genocídio. Eles são o exército mais forte, nós estamos desarmados e não queremos guerra. As pessoas precisam entender que o principal tema dessa guerra é a invasão israelense. Os Estados Unidos estão atacando os efeitos do problema e não as origens dele, que é a ocupação. Por outro lado, somos muito gratos ao presidente Fernando Henrique Cardoso. Ele foi muito feliz quando falou, na França, do direito palestino a um Estado. Além de ser o primeiro chefe de Estado a oferecer participação em uma força internacional de intervenção no conflito.
Quais as origens dos diferentes pontos de vista de Estados Unidos e União Européia sobre o conflito?
Os Estados Unidos não têm balanço: eles apóiam Israel e Sharon, que é visto por todos como um criminoso, responsável por massacres contra nosso povo em Sabra e Chatila. É uma política de "dois pesos e duas medidas", contra as tradições de liberdade dos Estados Unidos. Eles lutam contra o terrorismo no Afeganistão e apóiam o terrorismo de Estado israelense. Creio que nem a maioria dos israelenses apóia Sharon e sua ideologia que está nos levando a lugar nenhum, ao derramamento de sangue e ao sofrimento dos dois lados. Os americanos exigem democracia, mas que tipo de democracia sobrevive num território ocupado?
Já foi possível calcular o número de palestinos mortos durante a operação Muro de Defesa?
É difícil contar, porque não estamos livres para nos mover. Muitos foram presos e não sabemos se estão vivos ou mortos. Certamente, centenas estão mortos e milhares, presos.
O senhor afirma que a ocupação é o principal tema do conflito. É este o único problema?
Sem ocupação não haveria conflito. A ocupação é a causa de tudo. Temos que lidar com a raiz do problema, que é a ocupação. Temos que ver o porquê de existirem terroristas suicidas aqui, uma morte ali. Para encerrar a violência precisamos encerrar a ocupação, baseando-nos nas resoluções da ONU. Tudo tem uma origem, que é a ocupação israelense.
Mas se a ocupação acabasse amanhã, haveria paz?
Precisamos acabar com a ocupação e implementar as resoluções da ONU, especialmente as que dizem respeito aos refugiados. Hoje temos o maior número de refugiados da história, 4,5 milhões de pessoas, e eles precisam de uma solução justa. Eles não aceitarão ser refugiados para sempre. Eles precisam ter o direito de voltar às suas propriedades.
Como será possível ter 4,5 milhões de palestinos de volta ao território israelense, onde já vivem 5 milhões de judeus e 1 milhão de árabes? Isto não inviabiliza a existência de um Estado de maioria judaica, conforme o princípio básico de criação de Israel?
Os israelenses temem que o retorno dos refugiados iria acabar com seu Estado, mas isso não é verdade. Acho que muitos palestinos estão estabelecidos em outros lugares e não iriam largar tudo para retornar. Mas os refugiados que devem ter o direito de decidir se querem ficar onde estão ou não. Eles que irão escolher se querem voltar ou se preferem compensações financeiras. Os israelenses adotam suas resoluções que dão o direito de retorno aos judeus e acham que podem cancelar a resolução da ONU que garante o retorno dos palestinos. Os judeus de qualquer parte do mundo podem viver em Israel quando quiserem, mas se eu sou palestino e pertenço a uma família que está na Palestina desde antes de Jesus Cristo, eu não posso ir. Palestinos têm o direito de reaver suas propriedades que foram roubadas.
A maioria dos israelenses vê o retorno dos refugiados como uma medida inviável e a consideram uma forma dos palestinos bloquearem o processo de paz. O senhor acredita que algum governo israelense irá aceitar fazer um acordo condicionado a este princípio?
Isso não são condições, são resoluções da ONU. É possível imaginar paz sem uma solução para os refugiados? E por que os refugiados palestinos não poderão retornar às suas propriedades? Por que todos têm esse direito na Bósnia, na África e nós não temos? Esses são direitos individuais. Não queremos a destruição de Israel, mas queremos uma paz permanente. Não queremos um cessar-fogo para amanhã. Queremos trabalhar com os israelenses, baseando-se em princípios de igualdade e respeito mútuo.
Qual a popularidade de grupos como Hamas e Jihad Islâmica entre a sociedade palestina? Qual a influência desses grupos na organização política?
O governo israelense alimenta os extremistas no lado palestino, através de uma política de negação dos direitos palestinos: eles se recusam a sair dos territórios, desmantelar os assentamentos, permitir nossa movimentação ou dividir Jerusalém. Temos o direito de defesa. Resistir à ocupação é completamente diferente de terrorismo. Nós estamos fazendo o mesmo que o general De Gaulle fez na França, Mandela na África do Sul ou George Washington nos Estados Unidos: estamos resistindo à ocupação. Nós condenamos todos os tipos de terrorismo, incluindo o terrorismo de Estado, condenamos agressão a civis. Mas temos o direito de resistir à invasão.
Atentados suicidas contra civis israelenses, como fazem alguns grupos palestinos, são parte desta resistência legítima?
Somos contra atingir civis em qualquer causa, mas temos o direito de resistir e apelamos à comunidade internacional para que Israel respeite as leis internacionais. Se não houvesse a ocupação, não haveria resistência. Nós não queremos morrer, não queremos sofrimento.
O governo israelense diz ter documentos que provam as ligações de Arafat com o terrorismo, através de supostas transferências de dinheiro para organizações como as Brigadas dos Mártires de al-Aqsa, que assumiram a autoria de diversos atentados em Israel e são apontadas como o braço armado da Fatah, o grupo político de Arafat. Quais são exatamente as ligações entre a Fatah e as Brigadas?
A Fatah é um partido político grande. É como o PMDB, que abriga Itamar Franco e Michel Temer. As Brigadas participam da resistência à ocupação. Mas o governo palestino é contra atingir alvos civis
Os líderes da Fatah e das Brigadas participam juntos de negociações, discutem ações?
Não sei, represento o povo palestino como um todo, todos os partidos políticos. Não conheço esse tipo de detalhes, mas acho que os palestinos têm o direito de resistir à ocupação.
Antes de responsabilizar pessoalmente Arafat pelos atentados contra civis, o governo israelense já reclamava da falta de disposição da Autoridade Palestina no combate ao terrorismo. O que Arafat fez neste sentido antes de ser isolado em seu quartel-general em Ramalá? Os terroristas eram punidos?
Tentamos fazer nosso melhor, mas não podemos fazê-lo sozinhos. Quem alimenta o radicalismo? São os israelenses. Enquanto eles continuarem com Jerusalém, com assentamentos e com postos de controle, ninguém pode parar essas pessoas. O que nós podemos fazer? Mandar os terroristas pra cadeia? Eles não terão medo da gente. Matá-los? Também não terão medo. Entregamos para israelenses? Eles não terão medo. Precisamos eliminar as raízes do terrorismo para haver esperança de paz. Essas pessoas precisam de esperança. Se participarmos com os israelenses da pressão, eles (os terroristas) nos matarão como matam os israelenses. Ao invés de lidar com Hamas e Jihad, por que não estamos falando de acabar com a ocupação israelense, que é a causa do problema?
No Brasil, se alguém comete um crime vai preso, independentemente das causas que o levaram a isso. O senhor não acha que além de resolver as raízes do problema, também é importante punir os que cometem crimes?
Nós prendemos terroristas, mas daí os israelenses bombardeiam a prisão. É um crime de guerra. Os terroristas estavam presos numa cadeia em Nablus que os israelenses bombardearam com caças F-16.
Arafat usa bastante o termo "paz ampla”. O que isso quer dizer exatamente?
O cumprimento de todas as resoluções da ONU. O retorno dos refugiados, a soberania sobre Jerusalém Oriental, a retirada completa dos territórios ocupados na Faixa de Gaza, na Cisjordânia, no Golan e no sul do Líbano. Com ocupação não há estabilidade. Israel precisa pôr fim à arrogância, à mentalidade de potência de ocupação e a esta visão de que eles são pessoas diferentes dos outros. Se buscamos uma paz definitiva, precisamos da retirada de todos os territórios ocupados, incluindo a Síria e o Líbano.
Quando o Egito selou a paz com Israel, o fez apenas sob a condição de solução dos seus problemas diretos com os israelenses, pela troca de terra por paz. Por que o senhor acha que se não houver paz entre Israel e Síria, por exemplo, não haverá paz entre palestinos e israelenses?
A paz de Israel com o Egito é uma guerra fria. O problema deste conflito é a Palestina e temos que acabar com a ocupação. Eu respeito o ponto de vista dos egípcios e jordanianos, mas se queremos uma paz permanente precisamos acabar com qualquer fonte deste conflito. Só assim seremos bons vizinhos.
Quais as chances de palestinos firmarem um acordo de paz com o atual governo israelense?
O atual governo israelense abriga os israelenses mais radicais. Não acho que Sharon e seu governo estejam prontos para a paz. Só há guerra na agenda de Sharon: ele se opôs a todos os acordos de paz firmados por Israel. As crianças israelenses são educadas para acreditar que essa é a terra de Israel. Precisamos de um governo israelense que diga a seu povo que essa terra é nossa, que nós temos direitos e que somos vizinhos. A sociedade israelense pode eleger novos líderes.
O líder do MST Mario Lill voltou ao Brasil dizendo estar certo que salvou a vida de Arafat. O senhor concorda que foi a presença de militantes internacionais que evitou a morte de Arafat?
A posição dos internacionalistas foi muito importante porque dificultou as coisas para Israel. Sem o suporte dos Estados Unidos, Israel não faria o que faz. Nenhum país pode estar acima da lei. Esta política israelense está trazendo mais ódio contra eles. Se eles quiserem ser parte da nossa região tem que buscar justiça e não ser arrogante.
Que tipo de sociedade a Autoridade Palestina construiu enquanto teve tempo e estrutura para governar? A Palestina de Arafat é um país democrático?
Não é 100%, mas é o que conseguimos fazer. Não adianta criar um regime que não esteja adaptado à realidade cultural da região. Há países no Golfo Pérsico, como os Emirados Árabes Unidos, que são capazes de estabelecer um ambiente democrático mesmo sem eleger seu governante maior. Tentamos fazer o melhor, elegendo os líderes dos professores, dos trabalhadores e deixando que estas pessoas elejam os políticos.
O senhor acha que o conflito entre árabes e israelenses se tornou uma guerra de ódio das duas partes?
Não. As ações israelenses nos últimos 19 meses impediram a movimentação dos palestinos. Isso é uma humilhação que traz ódio. Os israelenses estão destruindo a infra-estrutura palestina: o ministério da educação, o aeroporto, a câmera de comércio. Que tipo de ameaça trazem para a segurança de Israel as mulheres grávidas que eles não autorizam ir ao hospital? Eles destruíram mais de 400 ambulâncias, deixaram pessoas sangrando e proibiram a Cruz Vermelha e os jornalistas de estarem lá para assim poder esconder os crimes de guerra. Eles estão lidando com os resultados da ocupação, da arrogância e da humilhação palestina.
Por que Arafat não aceitou a proposta de paz apresentada pelo então primeiro-minsitro israelense Ehud Barak em Camp David?
Barak queria fazer um queijo suiço, manter o controle das nossas fronteiras, nossa água, nosso espaço aéreo. Era um estado inviável, a proposta era uma piada. A Palestina não pode funcionar com a manutenção da ocupação. Não há terras em disputas para se negociar: esta terra é nossa. A Palestina é muito pequena, mas pode abrigar dois países e dois povos.
O que precisa mudar na sociedade palestina para que a paz seja alcançada?
Nós somos muitos claros: nós queremos uma paz definitiva sob as leis internacionais. É nosso objetivo e continuaremos perseguindo essa nobre causa. Está nas mãos dos israelenses decidir se o Hamas será maioria ou minoria. Não queremos qualquer parte desse conflito sofrendo. Os israelenses têm de mudar a mentalidade de ocupadores, de arrogância, e têm de respeitar os direitos dos palestinos. Eles não conseguirão nos expulsar.