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O Encouraçado
Potemkin
de
Sergei Eisenstein
O
cinema russo depois da revolução de 17 era financiado pelo estado e tinha
um objetivo claro: divulgar, para uma população majoritariamente analfabeta,
uma ideologia nova, uma outra forma de ver o mundo, apoiada em estudos
teóricos (inacessíveis para o cidadão comum), mas com propostas bem concretas
(e radicais) para a economia do País.
Esse caráter utilitário de “O Encouraçado Potemkin” costuma dividir seus
analistas do fim do século em dois grandes grupos, tão contrastantes quanto
as ideologias que o filme se propõe a confrontar. No primeiro grupo, estão
aqueles que consideram apenas a carga ideológica do filme. “O Encouraçado
Potemkin”, como veículo de propaganda de um governo, não passaria de um
instrumento político, mundano, tão artístico quanto o horário eleitoral
gratuito na televisão.
Com a queda do muro de Berlim (como as imagens são importantes...) e a
crise mundial da esquerda totalitarista, esses críticos imediatamente
encontraram motivos para considerar o filme tão ultrapassado quanto o
comercial de uma marca de sabonete que não é mais fabricada. Potemkin,
no final das contas, é um nome tão fora de moda quanto Trotski, Lenin
e Engels.
O segundo grupo reúne aqueles que, mesmo admitindo a carga ideológica
do filme (e não há como negá-la, posto que explícita, ao contrário da
tradição do cinema norte-americano), prestam um tributo eterno às suas
inovações estéticas. O muro caiu, mas o Potemkin não tem nada a ver com
o muro. Afinal, é uma obra de arte, que está acima de episódios históricos
e de suas interpretações. A partir daí, ficam falando da montagem inovadora,
dos movimentos de câmara nunca antes executados, da narrativa visual riquíssima,
da cena da escadaria de Odessa. Como se tudo isso estivesse desvinculado
de seu objetivo propagandístico.
Eu proponho que você, caro leitor do ZAZ, retire esse filme na locadora
e o assista sem preconceito nenhum. Claro que é importante considerar
o momento histórico em que foi realizado (1925, no auge do cinema mudo,
quando a linguagem audiovisual atingia sua maturidade), mas, fora isso,
vamos compará-lo com o que estamos vendo por aí: “Orfeu”,
“O troco”, “8mm”,
etc. Será que o roteiro funciona? Será que os personagens estão bem construídos?
Será que a narrativa tem ritmo, tem sabor de verdade, consegue emocionar?
Será que Eisenstein sabia colocar
a câmara no lugar certo? E, principalmente, será que o cineasta tinha
algo a dizer? Eu garanto que a resposta é sim para todos os quesitos.
O personagem principal de “O Encouraçado Potemkin” não tem nome. Na verdade,
não tem nem rosto. Mas não pensem que é abstrato. É apenas coletivo. Eisenstein
não contava um drama individual; ele narrava as dores de uma multidão,
ou, se quiserem, de um “povo”. Dirão os críticos apenas ideológicos: “revelando
aí todo seu sectarismo político, que coloca em segundo plano o fazer artístico”.
Dirão os críticos apenas estéticos: “revelando aí toda sua capacidade
de fazer arte, pois dribla seu objetivo ideológico”. Como se arte e ideologia
fossem campos opostos, ou duas camadas de leitura que, opacas, se anulam
quando sobrepostas (uma não lança luz sobre a outra).
Eu penso um pouco diferente. Todo
filme é resultado de um conjunto de forças, algumas mais óbvias do que
outras. Mas esse conjunto sempre inclui pelo menos duas variáveis fundamentais,
porque inerentes ao processo cinematográfico: quem pagou a produção e
quem se apresenta como seu autor. E, é claro, as circunstâncias históricas
que envolvem os dois lados dessa moeda. Em “O Encouraçado Potemkin”, o
estado marxista e ansioso por propaganda pagou tudo; Eisenstein, um cineasta
que simpatizava com o regime (mas que depois foi duramente perseguido
por ele) foi o autor. E os dois ficaram bastante satisfeitos. Na época
de seu lançamento, “O Encouraçado Potemkin” cumpriu seu papel didático,
além de proporcionar a Eisenstein reconhecimento internacional como um
grande cineasta.
A história que está sendo contada é emocionante: em 1905, marinheiros
de um navio do Czar rebelam-se contra a tirania de seus comandantes e
assumem o controle do Potemkin. A população de Odessa apóia a revolta.
As forças repressoras do regime czarista esmagam o movimento com violência
desmedida. Como se vê, não é uma história da revolução bolchevique.
Eisenstein poderia ter feito um filme burocrático, ou construído um discurso
cheio de lamúrias e auto-piedade. Mas, percebendo o caráter universal
da arma que tinha nas mãos, jogou todas as suas fichas na capacidade do
espectador de julgar o que vê, de procurar razões para o que está na tela.
Porque o público pode ser analfabeto, ou estar desinformado, ou enfrentar
restrições culturais, mas o público não pode ser tratado como um idiota.
Em “O Encouraçado Potemkin”, a ideologia do realizador está presente em
cada fotograma; contudo, não na forma de panfleto sectário, e sim como
retrato da intolerância humana, de qualquer origem ou período histórico.
Eisenstein era um artista, além de ser um revolucionário. E por isso o
filme sobreviveu. Contudo, não dá pra esquecer que sua obra é tão poderosa
porque estava impregnada de uma visão de mundo, de uma vontade imensa
de falar sobre esse mundo e, mais do que isso, transformá-lo. O muro caiu,
todo mundo sabe, mas o Potemkin – e alguns postulados que ele carrega
em seus porões - não caiu, nem afundou como o Titanic.
O Encouraçado Potemkin (Bronenosets Potyomkin),
1925. Direção: Sergei M.Eisenstein. Duração: 112
minutos. Roteiro: Sergei M. Eisenstein e Nina Agadzhanova Shutko. Elenco:
I. Bobrov, Beatrice Vitoldi, Carriage N. Poltavseva, Julia Eisenstein.
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Carlos
Gerbase
é jornalista e trabalha na área audiovisual, como roteirista
e diretor. Já escreveu duas novelas para o ZAZ (A
gente ainda nem começou e Fausto)
e atualmente prepara o seu terceiro longa-metragem para cinema, chamado
"Tolerância".
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