|
Entrevista - Marcos Bernstein |
|
Se
o roteiro é a alma de um filme, os roteiristas Marcos Bernstein
e João Emanuel Carneiro fizeram de Central
do Brasil não só uma obra inspirada de qualidade
e competência. Eles ajudaram a escrever o filme mais premiado da
história do cinema brasileiro.
Confira a "entrevista
coletiva" que os leitores do ZAZ realizaram com Marcos Bernstein.
As perguntas enviadas até o último domingo, 14 de março,
foram selecionadas pela redação e enviadas ao roteirista.
Leia mais sobre Marcos Berstein.
Fernando Raimundo Bueno - Sua formação
universitária é em Direito. Como conseguiu desvencilhar-se da lógica do
Direito e se tornar um roteirista tão talentoso? Você cursou alguma escola
de roteiristas?
Débora Cristina dos Santos - Gostaria de saber como foi a transição
do Advogado para o Roteirista. Você sempre sentiu uma inclinação para
o cinema ou simplesmente aconteceu?
Marcos Bernstein - Desde os 12, 13 anos, me lembro de perder
as madrugadas das minhas férias vendo filmes na Sessão Coruja da Globo,m
ou assistindo aos 2 ou 3 filmes da década de 30 e 40 que a Bandeirantes
exibia nas noites de verão.
Naquela época, 1982, ainda não havia TV a cabo e os filmes eram realmente
bons. O cinema clássico foi minha primeira paixão. Com o tempo, a relação
com o cinema foi se reforçando com livros, idas à cinemateca e aos cineclubes.
Mas nunca cheguei a pensar seriamente em seguir carreira, pois venho de
uma família de classe média de advogados e nunca imaginei que se pudesse
viver de cinema no Brasil.
Tentei fazer engenharia e depois pulei para direito. Só que chegou uma
hora em que a paixão por cinema tinha se tornado uma obsessão. Chata por
sinal. Cada filme "importante" que eu perdia era um sofrimento...
No meio do curso de direito conheci um colega de faculdade que fazia curtas,
o Marcos Guttmann. Ele estava realizando seu segundo filme e fui lá participar.
Descobri que um set é a coisa chata mais legal que existe. E tudo que
estava represado ganhou vazão. No início, meus pais ficaram preocupados,
mas sempre deram força. Até porque tenho um irmão músico. Depois disso
foi muita ralação, muito sapo engolido.
O cinema não acontece. Quem não tiver muita certeza de que quer fazer
cinema, não deve fazer. É uma profissão dura, irregular. Mas como nessa
altura eu queria com muita certeza fui atrás. A mudança para roteirista
foi aos poucos. Fiz assistência de tudo (pesquisa, direção, produção),
produzi e nesse meio tempo comecei a trabalhar com roteiro. Fiz a pesquisa
para um documentário do João Salles, que chamou a mim e a outra pesquisadora
para fazer o roteiro com ele. Se chama NÔMADES e ainda não
foi feito.
Nesse época, o Walter Salles e a Daniela Thomas começavam a trabalhar
no roteiro do Terra Estrangeira, após minha primeira experiência
com roteiro de documentário, eu tinha curiosidade de participar do processo
de elaboração do roteiro de um longa. Pedi para acompanhar como assistente.
Anotava coisas nas reuniões, passava as cenas para o computador (sempre
fazendo algumas alterações escondido) e logo estava questionando coisas.
Daí para arriscar idéias foi um passo. Outro passo para sugerir mudanças
na estória, em cenas, criar coisas novas...
Pronto. Tinha virado roteirista.
César Sátiro - Você escreveu quantas versões do roteiro de Central
do Brasil? Teve alguma coisa muito importante( idéia, cena..) da qual
teve que abrir mão?
Marcos Bernstein - Fizemos várias versões.
Tomando como base a idéia original do Walter Salles, começamos a desenvolver
por completo a estória do filme. Das 3 páginas iniciais, que continham
essencialmente o setup inicial do filme, criamos e desenvolvemos tudo
que iria acontecer em 20 páginas. Quando o Walter leu e aprovou, começamos
o roteiro.
De certa forma, o roteiro estava 70, 75% contido naquelas 20 páginas.
Por isso, fazer a primeira versão do roteiro foi rápido. Depois, começamos
a mudar coisas que não tinham funcionado e lá pela 4ª ou 5ª versão (a
que foi premiada no Sundance), cerca de 90, 95% do roteiro estava pronto.
Depois foi só afinar algumas cenas e diálogos, o que em termos numéricos
dá muito mais versões, mas que
efetivamente alteraram cada vez menos coisas. O Walter sempre abraçou
com muita generosidade nossas idéias. Algumas poucas ficaram pelo caminho
porque deveriam ter ficado pelo caminho mesmo. Não lembro de nenhuma divergência
grave.
Sérgio Sá Leitão - Rio de Janeiro - A sequência da morte do
menino em Central do Brasil foi inspirada no episódio do Rio Sul, quando
um PM matou um menino? O que você acha das críticas que vêem a como exagerada
e gratuita?
Marcos Bernstein - Não foi baseada no
episódio do Rio Sul. Para realizar o filme, e eu acho que isso vale para
qualquer filme "realista", tomamos os eventos que acontecem no dia-a-dia
como um parâmetro que nos daria o limite até onde poderíamos ir na nossa
criação. O evento do Rio Sul, portanto, funcionou como esse parâmetro.
Creio que ele serve também para deixar bem claro que um evento como o
do filme poderia ter acontecido numa situação daquelas na Central do Brasil.
Acontece todo dia? Não. Mas o filme não é telejornal. Ele é uma sucessão
de eventos dramáticos escolhidos pelos criadores do filme e alinhavados
para contar uma estória.
No nosso caso, precisávamos estabelecer que Dora estava lidando com pessoas
perigosas, que poderiam até tomar-lhe a vida em determinadas circunstâncias.
Acho que esse objetivo foi alcançado.
Quanto às críticas, elas são meio bobas... Estamos falando de um filme
de ficção. Em nenhum lugar diz que o filme é baseado em fatos reais ou
que é documentário. Pois não é. A realidade é parâmetro e não jaula criativa.
Seguindo essa linhas, a cena é dramaticamente justificada e justificável.
Não há nela nenhum evento que não poderia acontecer numa cidade como o
Rio. Um policial fez uma execução a sangue frio em plena Zona Sul do Rio.
Por que não seguranças informais (não se estabelece relação entre eles
e a direção da Central do Brasil) responsáveis pela proteção de um local
como a Central?
Vou dar outro bom parâmetro. Eu mesmo tive um ano de muito azar, acho
que foi 95. Me renderam no meu primeiro carro recém-comprado e me levaram
por cerca de 5 minutos sob a mira de uma pistola, até que negociei e me
deixaram saltar no meio da Barra da Tijuca. Depois disso, passei por 2
tiroteios, sendo que num deles eu vi a faísca da bala saindo do revólver.
Nesse mesmo fatídico ano fui assaltado umas 3 vezes no sinal... Acho que
deu para sentir como pode ser um mau ano numa cidade brasileira.
Uma pessoa disse que se aquele assassinato tivesse ocorrido na Central
teria tido imprensa, investigação... Provavelmente. E daí? O filme não
tratava desse crime. Provavelmente o JB e O Globo estiveram lá na Central
enquanto Dora se perdia no nordeste com Josué e trataram do assunto. Quem
sabe em Central do Brasil 2 possamos falar dessas investigações?
De qualquer modo, até cabe uma pergunta: haveria outra solução que tivesse
a mesma função dramática e que não incomodasse ninguém? Talvez. Nós não
a tivemos. Mas quem disse, que não é bom incomodar um pouco os outros?
Continua...
|