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ALÉM DA LINHA
VERMELHA
RAPIDINHO
Todas as guerras são
estúpidas, certo? Mas algumas guerras são inevitáveis, certo? Certo, certo.
Ou você acha que todo mundo deveria ficar quieto enquanto Hitler conquistava
o mundo em nome de uma raça mais perfeita? Ou que Saddam tinha direito
de se apossar do Kuwait? Às vezes, contra uma estupidez, só uma estupidez
maior, ou estúpidos melhor armados. Assim é o mundo, e é inevitável que
o cinema use a guerra como material dramático: o conflito é gigantesco,
as emoções são explícitas e os cenários são movimentados. Enfim, guerra
sempre fornece bom material para os roteiristas. Mas, assim como nem todas
as guerras são iguais, nem todos os filmes de guerra são iguais.
Simplificando ao máximo, dá pra dizer que existem duas grandes famílias
de filmes de guerra: os que mostram a guerra como uma coisa estúpida,
mesmo que inevitável; e os que mostram a guerra como uma coisa inevitável,
mesmo que estúpida. Pode parecer sutil, mas não é. Fazer um filme sempre
é mostrar pessoas fazendo coisas (matando outras pessoas numa guerra,
por exemplo), mas as motivações dessas pessoas é o que importa. Cabe ao
cineasta selecionar motivações, dar sentido ao caos, organizar o movimento.
Do contrário, uma guerra seria melhor representada por um vídeo-game,
em que o único sentido é matar mais pessoas para ganhar mais pontos. Cinema
não é um jogo, e Malick é um dos poucos que ainda lembra disso.
AGORA COM MAIS CALMA
Além da Linha
Vermelha é um grande filme sobre a grande estupidez da guerra, na
linhagem de Glória feita de sangue e Apocalypse now. E está
muito distante da outra linhagem, da qual o exemplo mais recente é O
resgate do soldado Ryan. Terrence Malick fez um filme de guerra
explicitamente pacifista. Não só mostra a estupidez do que acontece, como
oferece uma alternativa, a não-guerra, através de uma coisa simples chamada
"deserção". Desertar, para os militares, é a coisa mais abominável e imoral
que existe. Também é abominável e imoral para as pessoas que estão em
casa, financiando o festival de mortes proporcionadas pelos militares
e acreditando que seus filhos vão morrer por "uma boa causa". Mas desertar,
para um soldado, não tem nada de abominável e, além de ser ético, é inteligente:
afronta-se o sistema e fica-se vivo por mais tempo.
Tenho lido que Além da linha vermelha trabalha com os limites da
sanidade e da loucura. Tudo bem. Mas também trabalha com os limites do
patriotismo e da estupidez de qualquer exército, seja ele americano, japonês,
alemão ou brasileiro. Isso é discutir ideologia, e não psicologia. O filme
de Malick incomoda mais do que diverte. Afronta mais que conforta. E por
isso não será esquecido. Fotografia extraordinária, roteiro surpreendente,
montagem ousada, atores de talento. Tudo isso reunido nas mãos de um diretor
que - pelo que li - caminha nos limites entre o perfeccionismo autoral
e o ódio do resto da equipe.
Malick filmou uma guerra tão espetacular quanto a de Spielberg, mas, ao
contrário deste, não dividiu os soldados em "bons" e "maus". Os japoneses
de Malick são de verdade, são inocentes e também estão soterrados pela
estupidez da guerra que os condena à morte. Malick não explica, não suplica
que o espectador se emocione num campo cheio de cruzes brancas. Malick
dá o seu recado e permite que o espectador pense. Tem gente que ainda
gosta.
Em Apocalypse now, Coppola conseguiu traduzir o horror da guerra
em imagens quase psicodélicas, uma "bad-trip" coletiva sem bilhete de
volta. E, para deixar bem claro qual é o resultado dessa viagem, usou
o personagem de Marlon Brando, um homem que encontrou um sentido real
para a guerra, já que o sentido oficial revelou-se uma grande mentira.
Em Além da linha vermelha, Malick mantém-se sempre realista, usando
as narrações em OFF dos personagens para refletir sobre a mesma ausência
de sentidos, a mesma sensação de lutar contra um fantasma, a mesma náusea
de caminhar na direção da morte cumprindo ordens que já perderam, há muito
tempo, qualquer relação com a origem do conflito. O rio de Coppola e a
ilha de Malick são a mesma coisa: arenas de animais que perderam a auto-determinação
(e, portanto, a humanidade) e agora lutam entre si guiados apenas pelos
instintos.
Além da linha vermelha foi adaptado do romance autobiográfico de
James Jones, e aí deve estar a origem do único ponto negativo do filme:
tem personagens demais. São muitos, todos vestem uniformes parecidos,
quase todos são jovens. Eles acabam se confundindo, e a maioria não tem
tempo suficiente para construir sua individualidade. Boas histórias (a
do soldado abandonado ao longe pela mulher, por exemplo) não são bem concluídas.
Personagens desaparecem de repente. E algumas participações especiais,
como as de John Travolta e George Clooney ficam um pouco ridículas. O
filme seria melhor com menos personagens. Não confundir menos personagens
com menor tempo de duração. Por mim, as três horas de duração poderiam
ser quatro.
Mas aposto que Terrence Malick fez o filme exatamente como queria. E fez
questão de cometer todos os erros a que tinha direito, o que é a maior
liberdade que um cineasta pode querer. Espero que ele continue assim.
(P.S.1 SOBRE O OSCAR: Enquanto escrevo, Maurício Kubrusly está
ao vivo, numa pracinha de Cruzeiro do Nordeste (uma das locações de "Central
do Brasil"), onde uma pequena multidão, todos segurando velas, vão acompanhar
o Oscar. Kubrusly pergunta para um dos cidadãos seguradores de vela, um
pouco desdentado e com ar cansado: "Então, você acha que o nosso filme
tem chance?" E o cara responde: "Claro! Se Deus quiser!." Kubrusly, brabo,
imediatamente o corrige: "Não! Não é se Deus quiser, é pela qualidade.
Pela qualidade!". Acendam uma vela por Kubrusly e por todos os brasileiros
que acendem velas: um dia eles aprendem. Acho que esse ano vou dormir
antes da segunda música.)
(P.S.2 SOBRE O OSCAR: Contra todas as previsões, fiquei acordado
e vi a reação de "tristeza" dos apresentadores da Globo quando "A vida
é bela" venceu o Oscar de filme estrangeiro. Mais uma vez, Roberto Benigni
foi chamado de palhaço em tom de preconceito e, numa patriotada notável,
ninguém falou dos méritos desse filme extraordinário. Depois, quando Benigni
venceu o de melhor ator, a frase lapidar: "Até mesmo Tom Hanks seria melhor
que Roberto Benigni." É dose. E esses patriotas de pijama esqueceram de
dizer queCentral do Brasil" venceu o Urso de Ouro em Berlim, prêmio
muito mais respeitável que o Oscar, embora não tenha a sua importância
econômica.
Mas tudo tem sua lógica. No intervalo comercial, Fernanda Montenegro diz
que a maior alegria de uma atriz é ver seu trabalho com o som perfeito
e a tela grande de uma TV Philips. Com todo o respeito pela Sra. Montenegro
(sempre maravilhosa, talentosa, muito acima dos publicitários que a colocaram
nessa roubada) ali está cristalizada a síntese perfeita da nossa jequice,
que consegue superar até mesmo a jequice do Oscar.)
(P.S.3 SOBRE O OSCAR: E quando Spielberg ganhou o Oscar de diretor,
o mesmo comentarista da Globo disse: "Pelo menos não foi o Roberto Benigni".
É isso. O pessoal estava torcendo CONTRA um diretor talentoso e um excelente
filme italiano, latino como nós, feito com dificuldade, e A FAVOR de um
diretor americano, o mais poderoso e previsível de todos eles, tudo porque
Benigni e "A vida é bela" ROUBARAM nossos Oscars. Só faltou xingar a mãe
do juiz. Será que o pessoal de Cruzeiro do Nordeste entendeu essa noite?
Eu devia ter ir dormir antes da primeira música.)
(P.S.4 SOBRE O OSCAR: "Além da linha vermelha" não ganhou Oscar
nenhum. "Shakespeare apaixonado" ganhou uma sacola cheia. E os dois filmes
são muito bons. O mundo não é justo. Grande novidade! E boa noite.)
Além
da Linha Vermelha (EUA, 1998). De Terrence Malick.
Dê sua opinião ou cale-se para sempre
Carlos
Gerbase é
jornalista e trabalha na área audiovisual, como roteirista e diretor.
Já escreveu duas novelas para o ZAZ (A
gente ainda nem começou e "Fausto") e atualmente
prepara o seu terceiro longa-metragem para cinema, chamado "Tolerância".
Índice de colunas.
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