São Paulo - Pelé tem 60 anos. Mas, agora mesmo, se surgir uma bola, a expressão de seu rosto muda. Em milésimos de segundo ele passa a ser o menino de 12 anos que, andando pelas ruas de Bauru, quando voltava da escola, chutava tudo que pudesse lembrar uma bola. Uma tampinha de garrafa, uma pedra, uma laranja. Aí sim, ele era feliz.
Quando voltava à realidade, chegava em casa com o dedo sangrando. Dona Celeste, a mãe, já sabia: o menino, mais uma vez, andara sonhando que era jogador de futebol.
Nesta segunda-feira, sem bola, Pelé, quando sorri, lembra um menino de 17... Um garoto que parece não envelhecer. Ao chegar aos 60, não quis festa e nem preparou jogo comemorativo. Não por medo de não dar conta do recado.
Para aqueles que possam duvidar e acham que ele só está podendo relembrar os tempos de atleta de vez em quando, o homem que continua até hoje fazendo reis, rainhas, ministros e presidentes se levantar para lhe dar passagem avisa: "Só não fiz jogo-exibição porque não tive tempo de me preparar adequadamente, senão estaria em campo".
Pelé conta que foram muitos os compromissos que o impediram de, pelos menos durante uns três meses, fazer uma pequena preparação física.
É esse homem que, no alto de sua simplicidade, parece não envelhecer. Com 1m72 e setenta e pouco quilos distribuídos num porte que não perdeu o de atleta. As poderosas coxas que mediam 63 centímetros 30 anos atrás parecem intactas. Lembra quem passou anos e anos no magnífico exercício do drible. Lembra os 1.283 gols marcados em partidas oficiais pelo Santos, seleção brasileira e pelo Cosmos, dos Estados Unidos.
Com tanta bagagem, nem mesmo assim ele mudou. Continua quase que o mesmo, não fossem algumas pequenas e insignificantes rugas. Tão insignificantes que, perto de outros monstros sagrados do esporte, desaparecem.
Conta um amigo do "Rei" que em novembro de 1999, em Viena, Áustria, quando várias celebridades receberam o prêmio de atletas do século, Pelé foi, como era de esperar, o centro das atenções. Em determinado momento, bateram em suas costas. "Por favor, pede ao Pelé uns autógrafos para meus filhos, eles adoram futebol." O amigo do "Rei" não reconheceu quem fez o pedido. Na insistência, olhou com mais atenção.
Era Mark Spitz, nadador norte-americano que ganhou 7 medalhas em uma única Olimpíada, em 1972, em Munique, Alemanha. Estava grisalho, envelhecido, longe de ter a aparência daquele atleta genial.
CPI - Pelé nunca foi de badalação, mas por obrigação esteve nas mais importantes festas e encontros de personalidades do mundo. Desta vez, preferiu comemorar os seus 60 anos na Europa, ao lado da mulher, Assíria. Aproveitou para participar de compromissos assumidos com a Fifa, em Zurique, Suíça. E também para dar o último chute a gol no lendário estádio de Wembley, em Londres, que será demolido. Claro, mais uma honraria ao Rei do futebol.
Mas, o maior presente que gostaria de ganhar, Pelé fala de bate-pronto: saúde, muita saúde, para comemorar 70, 80 anos. E emenda, como se estivesse com a lista nas mãos. "E também que o futebol brasileiro não termine em pizza."
O comentário teve alvo certo. Pelé dirigiu as palavras para os membros da CPI que foi instalada semana passada em Brasília, para investigar, entre outras coisas, o contrato da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) com a patrocinadora da seleção brasileira, a Nike, além das transações de venda de passes de jogadores e a prestação de contas dos atletas e clubes à Receita Federal.
Pelé acredita que hoje nem precisava de uma CPI. "Era só fazer uma auditoria, mais nada", fala, com tom de voz agora marcado pela amargura de quem viveu a dura realidade do obscuro mundo do futebol brasileiro. "É muito estranho, no meu tempo de ministro a gente não conseguiu fazer uma CPI, nem passava pela Câmara; agora foi só o Senado aprovar que saiu a outra", insinua, lembrando que vários deputados têm algum tipo de ligação com o esporte.
Copa João Havelange - É seguindo esse raciocínio que ele volta a falar do futebol de maneira triste. "Veja esta Copa João Havelange, é uma das coisas mais absurdas que aconteceram no futebol nos últimos tempos." E emendou: "É uma grande brincadeira." É a partir daí que dá para sentir a imensa tristeza que se abate no coração de quem fez da bola seu mestre.
Quando o assunto é futebol, esse futebol marcado por CPIs, campeonatos desorganizados, Pelé fala com amargura. Ele, com sua genialidade, não queria transformar o mundo, mas acreditou que poderia mudar as estruturas do futebol brasileiro. Não deu certo.
Sua fala repercute pelo mundo, mas aqui, no seu próprio País, cai no rastro da poeira, dos interesses paralelos. "A televisão está mandando no futebol brasileiro", fala, como se fosse um alerta. "Ninguém percebe isso?", pergunta. O homem que sonha em ver o futebol brasileiro tão organizado quanto o da Europa diz que o raciocínio daqueles que comandam o futebol atualmente é simples: "É mais fácil dar os clubes falidos para a televisão do que organizar bem um campeonato."
Seleção brasileira - Quando Emerson Leão foi anunciado como novo técnico da seleção brasileira, Pelé já estava a caminho de Praga, capital da República Checa. Antes, porém, falara do ex-técnico, Wanderley Luxemburgo. E não poupou críticas. "Como já estamos acostumados, no Brasil é preciso acontecer uma desgraça para arrumar a casa", falou, referindo-se à campanha da seleção brasileira na era Luxemburgo.
Uma fase do futebol nacional que para Pelé foi marcada pela prepotência, falta de humildade e por não querer enxergar o que a história já contou tantas vezes. "Eu tenho um exemplo que aconteceu comigo", relembra o "Rei", pronto para relatar o fato vivido em 1966.
Na fase de preparação da equipe para a Copa do Mundo da Inglaterra, foram convocados 44 jogadores. A seleção fracassou, caindo logo na primeira fase (venceu na estréia a Bulgária por 2 a 0, gols de Pelé e Garrincha; depois, perdeu para a Hungria e Portugal, ambos os jogos por 3 a 1). Foi preciso então repensar a estrutura da equipe e a forma de preparação. Quatro anos depois, em 1970, o Brasil sagrava-se tricampeão mundial no México. "O Wanderley está colhendo o que plantou", resumiu Pelé ao encerrar o assunto.
Mas, antes, não se furtou de falar sobre as negociações na venda de passe de jogadores. Você acredita que um técnico possa levar uma comissão na venda de passe de jogadores? A resposta foi direta: "Acredito sim e é mais comum do que se imagina."
Pelé não esconde que tudo isso gera uma grande amargura. O futebol que o fez "Rei" o decepciona, ou melhor, são as pessoas que o comandam que causam preocupação. Mas, como mudar é batalha diária, ele agora quer um tempo para viver com plenitude os 60 anos. A mesma que teve aos 40, quando já dizia: "A idade não me assusta."
O tempo passou e o menino que chutava tampinha de garrafa continua com o mesmo sorriso, sem um fio de cabelo branco.
Há 10 anos, quando completou meio século de vida, as comemorações foram tantas que ele confessa: chegou a cansar. Mas disse. "Se eu tivesse de repetir, repetiria tudo que fiz até hoje, sou um homem feliz."
A felicidade continuou acompanhando Pelé nos 10 anos seguintes. Aos 60, casado de novo, dois filhos pequenos, ele só quer paz. Até hoje, por onde passa, é obrigado a parar inúmeras vezes para dar autógrafos ou um simples aperto de mão. Talvez seja por isso que Pelé promete não desistir de tentar ajudar o futebol brasileiro a sair da confusão em que acabou sendo colocado.
E, sem pestanejar, já faz planos para daqui a 10 anos. Aos 70 vai, sim, fazer jogo comemorativo. Podem esperar, avisa. Maracanã cheio e que venha a seleção. Ele promete dar conta.
Aos amigos, aqueles tantos com os quais, por falta de tempo, não consegue falar, aproveita para mandar mais um recado: "Gente, não dói nada, é maravilhoso fazer 60 anos."