São Paulo - Jeito simples, garotão surfista, Gustavo Kuerten não mudou mesmo depois de ter se consagrado com o primeiro título de Roland Garros, em 1997. Na época, o técnico Larri Passos fez questão de que seu pupilo seguisse a rotina. Não quis voltar para o Brasil e desfilar em carro aberto do Corpo de Bombeiros. Achou, com razão, que o melhor seria continuar nas quadras da Europa.
Campeão de Roland Garros, Guga já poderia se considerar um milionário. Mas nem mesmo ele parecia saber avaliar a fortuna que viria com o título na França. Suas viagens continuaram dentro de padrões simples. Duas semanas depois de erguer o Troféu dos Mosqueteiros em Paris, Guga chegou a Londres - para o torneio de Wimbledon - desembarcando do trem na estação de Victoria. Humilde e simples, viajou em vagão de segunda classe, sem fazer exigências. Cansadão, dormiu em uma poltrona pequena, com uma mulher muito gorda ao lado, tirando ainda mais o conforto do campeão.
Ela não poderia imaginar que a seu lado estava um já famoso tenista. Nem daria para acreditar que alguém que tinha recebido um cheque de US$ 700 mil há poucos dias - e ainda ganharia contratos publicitários milionários - pudesse ser tão tranqüilo a ponto de enfrentar uma viagem assim.
A vida já tinha ensinado a Guga que essa situação faz parte da formação de um tenista. O jeito simples resistiu o quanto pôde e parece já dar saudade. "Fazia tempo que não viajava de trem, carregando as malas nas costas - as minhas e as do Larri", brincou Guga. "Mas agora, na França, pegamos um trem de Lyon para Paris e deu até para matar a saudade daqueles tempos."
Hoje esse tipo de viagem já não é mais uma rotina para o tenista, que já teve de jogar no saibro de Umag, na Croácia, para acumular pontos no ranking. Guga, como ele mesmo diz, aprendeu a curtir melhor o circuito. Por isso, se antes podia servir de guia, indicando a turistas pouco abonados hotéis de bons preços, agora vive no brilho das estrelas.
Desde que Guga tornou famoso o modesto Hotel Mont Blanc, de Paris - onde voltou a se hospedar um ano depois de vencer em Roland Garros -, o local vive repleto de brasileiros que buscam boa acomodação a preços convidativos. Agora, os endereços do tenista são um pouco diferentes. Afinal, com sua fama e dinheiro, não se pode mais permitir os mesmos hábitos.
Hoje, Guga já pode ser visto em bons restaurantes, hotéis de luxo, shows de estrelas do rock, musicais famosos. Ampliou seus horizontes. Sabe aproveitar melhor as viagens e tirar proveito dos dólares ganhos com suor nas quadras do circuito profissional.
"Aprendi o que posso fazer nas viagens", disse Guga. "Sei que posso aproveitar um dia ou outro para sair, ir a um show do Santana, por exemplo." O novo estilo pôde ser bem observado durante a Olimpíada de Sydney, em setembro. O tenista era um dos torcedores mais vibrantes e divertidos nas competições. Foi a vários jogos, torceu, empolgou-se e aproveitou. Durante o circuito profissional, também costuma fazer coisas assim. Este ano, foi assistir a um jogo da brasileira Janeth, que defende o Houston Comets na WNBA norte-americana, a versão feminina da NBA.
Em suas andanças, conheceu lugares interessantes, com boa comida e gente amiga. Em Paris, sempre que dá, prestigia o show de um artista brasileiro, Marcelo, cantor e músico de talento. Aproveita para matar a saudade de casa, ouvindo música brasileira.
AS VIAGENS - Com as exigentes regras da Associação dos Tenistas Profissionais (ATP), Guga não tem muito o que escolher em seu calendário e roteiro de torneios. Joga cerca de 23 semanas por ano - além da Copa Davis - e é obrigado a participar dos quatro Grand Slams e dos nove Masters Series. Só com isso seu ano já está praticamente pré-determinado pela regulamentação da ATP, que atinge os 50 tenistas mais bem colocados do ranking.
Durante o ano de 2000, Guga cruzou o planeta num roteiro meio maluco, que exigiu do brasileiro horas e horas em aviões. Para se ter uma idéia, o tenista foi de Florianópolis a Melbourne, na Austrália, passou por Paris, Tóquio e Bogotá.
UM DOS MELHORES - Para se transformar num dos melhores tenistas que o Brasil já conheceu, a ponto de brigar pela condição de número1 da temporada 2000, Gustavo Kuerten vive como um nômade desde os 14 anos. É um cigano de raquete, que faz história como o primeiro brasileiro a conquistar um título do Grand Slam. E já está em Portugal, onde treina para a disputa, a partir de terça-feira, do Masters Cup, o Mundial de Tênis, em Lisboa, que vai reunir os oito melhores jogadores da temporada. O torneio vai apontar o tenista número 1 do ano 2000.
O campeonato em Portugal marca o fim de uma temporada brilhante, com títulos como o bicampeonato de Roland Garros. Ao mesmo tempo, determina o fim de um ano exaustivo, repleto de viagens, hotéis, diferenças de fuso horário, costumes e comida, entre outras tantas mudanças que já fazem parte da vida de quem, a cada semana, está num canto do planeta.
Apenas em 2000, Guga já deu mais de três voltas ao redor do mundo. É preciso ter muita força de vontade e um certo temperamento cigano para enfrentar três viagens para a Austrália, uma para Tóquio, uma para Hong Kong e muitas e muitas outras para os Estados Unidos e Europa.
"Já conheço o mundo todo", contou Guga, esta semana, em Florianópolis, um dia antes de embarcar para Lisboa. "Só falta ir à África." Por ironia, o continente africano deve continuar como o único a não ser visitado pelo tenista brasileiro. Hoje, em razão de sua posição entre os líderes do ranking mundial, dificilmente terá oportunidade de jogar novamente torneios pequenos, como os da África. Nem tem mais necessidade de buscar pontos nos mais distantes e curiosos pontos do planeta.
"Minhas viagens agora são quase sempre para os mesmos lugares", constatou o tenista. "No começo da carreira, era diferente", prosseguiu. "Onde quer que houvesse um torneio em que pudesse ganhar pontos, lá estava eu e não hesitaria em viajar para a África se fosse necessário."
A história de Guga é uma dura realidade do tênis. Para ser um vencedor na modalidade, não existe alternativa a não ser aventurar-se pelo mundo. Os brasileiros, especialmente, por estarem distantes do circuito, sofrem muito mais. Os europeus, por exemplo, não precisam cruzar o Atlântico a toda a hora para participar de torneios e podem crescer no esporte jogando perto de casa, acumulando pontos que lhes dêem condições razoáveis no profissionalismo.
O brasileiro não teve essa vantagem. Desde os tempos de juvenil, acostumou-se a pegar a raquete e a colocar as malas nas costas para viver desafios em quadras bem distantes de sua Florianópolis. "Naquela época era muita viagem de trem", disse. "Precisava jogar mais e mais para buscar pontos e ganhar experiência."
O guia - A rotina de Guga teve um grande incentivador. Seu técnico, Larri Passos, já tinha experiência de viagens com outros bons juvenis brasileiros. Era um batalhador, um garimpeiro de talentos, que saia pelo mundo com vários jogadores de potencial, mas que por infortúnios não alcançaram o mesmo sucesso de seu atual pupilo.
No esquema do treinador, a vida nômade era carregada de sacrifícios. Hotéis modestos, quartos divididos, viagens de trens, nada de mordomias, só muito trabalho. Raquetes, roupas, bolinhas, tudo era mais complicado para se conseguir. Qualquer ajuda era bem-vinda, tanto é que Larri Passos não se cansava de buscar apoio, pedindo equipamentos para seu pupilo, em tempos difíceis. Talvez, por isso, se explique a tamanha gratidão que Guga tenha por seus patrocinadores mais antigos, que ajudaram no seu início de carreira.