No texto de Drummond a seguir, o autor se despede dos leitores ao resolver parar de escrever crônicas para jornais. Leia-o e responda às questões de 22 a 29.
Ciao
(...) Nasceu (...), na velha Belo Horizonte dos anos 20, um cronista que ainda hoje, com a graça de Deus e com ou sem assunto, comete as suas croniquices.
Comete é tempo errado de verbo. Melhor dizer: cometia. Pois chegou o momento deste contumaz rabiscador de letras pendurar as chuteiras (que na prática jamais calçou) e dizer aos leitores um ciao-adeus sem melancolia, mas oportuno.
(...) Procurou extrair de cada coisa não uma lição, mas um traço que comovesse ou distraísse o leitor, fazendo-o sorrir, se não do acontecimento, pelo menos do próprio cronista, que às vezes se torna cronista do seu umbigo, ironizando-se a si mesmo antes que outros o façam.
Crônica tem essa vantagem: não obriga ao paletó-
-e-gravata do editorialista, forçado a definir uma posição correta diante dos grandes problemas; não exige de quem a faz o nervosismo saltitante do repórter, responsável pela apuração do fato na hora mesma em que ele acontece; dispensa a especialização suada em economia, finanças, política nacional e internacional, esporte, religião e o mais que imaginar se possa. (...) O que lhe pedimos é uma espécie de loucura mansa, que desenvolva determinado ponto de vista não ortodoxo e não trivial e desperte em nós a inclinação para o jogo da fantasia, o absurdo e a vadiação de espírito. Claro que ele deve ser um cara confiável, ainda na divagação. Não se compreende, ou não compreendo, cronista faccioso, que sirva a interesse pessoal ou de grupo, porque a crônica é território livre da imaginação, empenhada em circular entre os acontecimentos do dia, sem procurar influir neles. Fazer mais do que isso seria pretensão descabida de sua parte. Ele sabe que seu prazo de atuação é limitado: minutos no café da manhã ou à espera do coletivo.
(...) Foi o que esse outrora-rapaz fez ou tentou fazer
em mais de seis décadas. (...) Em certo período,
consagrou mais tempo a tarefas burocráticas do que
ao jornalismo, porém jamais deixou de ser homem de jornal, leitor implacável de jornais, interessado em seguir não apenas o desdobrar das notícias como as diferentes maneiras de apresentá-las ao público. Uma página bem diagramada causava-lhe prazer estético; a charge, a foto, a reportagem, a legenda bem feitas, o estilo particular de cada diário ou revista eram para ele (e são) motivos de alegria profissional. (...) A duas grandes casas do jornalismo brasileiro ele se orgulha de ter pertencido ― o extinto Correio da Manhã (...) e o Jornal do Brasil (...). Quinze anos de atividade no primeiro e mais 15, atuais, no segundo, alimentarão as melhores lembranças do velho jornalista.
E é por admitir esta noção de velho, consciente e alegremente, que ele hoje se despede da crônica (...)
Aos leitores, gratidão, essa palavra-tudo.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Ciao.
Jornal do Brasil, São Paulo, 29 set. 1984.
Vocabulário
Faccioso: parcial
Diagramar: fazer a diagramação (projeto gráfico).
Divagação: desvio do assunto ou tema de conversa
Ortodoxo: que segue qualquer doutrina estabelecida.
Outrora: antigamente, noutro tempo
Trivial: que é sabido de todos; comum, vulgar.
22Drummond discorre sobre a estrutura e os temas da crônica, comparando-a com outros tipos de texto. Baseando--se nas considerações do autor, assinale a alternativa correta.
a) Como é sempre publicada em jornais, da crônica espera-se que dê conta de falar dos fatos recentes, sendo parecida, nesse sentido, com a reportagem jornalística.
b) Como o cronista fala sobre aspectos de diferentes áreas, é exigida dele a superespecialização, ou seja, conhecer com profundidade todos os temas tratados.
c) Por expressar opinião pessoal, a crônica nunca deixa de ser parcial, convencendo o leitor a aceitar os pontos de vista defendidos pelo autor.
d) O objetivo maior da crônica é dar opções para mudar os fatos narrados, fazendo com que melhores tipos de comportamento tenham lugar na sociedade.
e) Escrita de forma livre, a crônica toma como tema fatos cotidianos ou a vida do autor, buscando comover ou distrair o leitor e dando ensejo a devaneios imaginativos.
23O autor emprega no texto, muitas vezes, a linguagem figurada, fugindo do significado literal dos termos e criando sentidos diversos dos usuais. Tendo isso em mente, assinale a alternativa que apresenta linguagem figurada.
a) “Uma página bem diagramada causava-lhe prazer estético.”
b) “(...) não exige de quem a faz nervosismo saltitante do repórter.”
c) “Comete é tempo errado de verbo.”
d) “A foto, a reportagem (...) eram para ele (e são) motivos de alegria profissional”.
e) “E é por admitir esta noção de velho.”
24O hífen é usado, entre outras coisas, para unir duas ou mais palavras, criando sentidos novos, sem formar, necessariamente novos vocábulos. Sabendo disso, assinale a seguir a alternativa que explicite o significado da expressão “gratidão, essa palavra-tudo”, no texto de Drummond.
a) Gratidão é palavra que pode ser usada em qualquer contexto.
b) O termo gratidão substitui qualquer vocábulo de um texto.
c) O uso do vocábulo gratidão, por ter significado muito amplo, prejudica o entendimento do discurso.
d) Gratidão é palavra que diz muito acerca dos sentimentos do autor do texto, no momento da despedida do ofício de cronista.
e) A palavra gratidão aparece no texto, mas seu uso não era necessário, já que possui significado diverso do mostrado pelas argumentações do autor.