Tron: O Legado

» Crítica

Carol Almeida

Muito antes da Matrix, havia o Grid. Muito antes do play, havia o bit. E muito, muito tempo antes de tudo que entendemos hoje como realidade virtual, havia Tron. A gênese do nome conta que ele nasceu para batizar um software de segurança. Este programa terminou servindo de condutor para a encruzilhada em que nos encontramos hoje, aquela que coloca frente a frente, como num filme de faroeste, o mundo do lado de fora e de dentro de um circuito de computador. Mas Tron virou algo maior. Não era só um filme em 1982, quando chegou aos cinemas. E não é só um filme em 2010, quando retorna às telas. Tron sempre foi, e sempre será, uma marca (ideia que costuma ser decodificada como "experiência"). E é assim que a Disney, proprietária dessas poderosas quatro letras, vem divulgando aquele que promete ser seu mais rentável lançamento das férias de fim de ano.

Tron: O Legado é mais um produto dessa marca que pressupõe tecnologia de ponta e expressões publicitárias como "rompimento de fronteiras digitais", palavras que, ditas na voz grave de Jeff Bridges, parecem ecoar como profecia em nossos ouvidos. Teoricamente, estamos falando de uma sequência do Tron que estreou em 1982. Naquela época, quando foi introduzido ao público a ideia de que havia um mundo de vontades próprias entre programas de computador, os games eram uma construção gráfica bidimensional, a internet era um conceito distante aos usuários civis e, portanto, toda essa nossa vivência online era algo de ficção científica.

Portanto, em teoria, essa é uma continuação. Na prática, este é o Tron que o diretor Steven Lisberger quis fazer em 1982, mas no contratempo da tecnologia que ainda não existia, teve que esperar a virada de milênio para convencer a Disney a produzir "a" imagem, "a" luz, "a" trilha que iria, de fato, romper as tais "fronteiras digitais" ou, se preferir, a sua pupila e tímpano.

Portanto, ao fechar das cortinas, o filme Tron: O Legado será lembrado como uma incrível experiência visual e sonora, com cenas de ação de fazer muita gente se contorcer na cadeira, uma trilha virtuosa e impactante do Daft Punk, e uma trama repleta daquelas explicações científicas que soam como klingon aos ouvidos humanos.

Desconhece o significado de klingon? Não tem problema, para entender o conflito desse filme, basta saber identificar a índole dos personagens segundo a cor da luz que eles vestem. Portanto, ainda que tenha um roteiro coeso com um certo sentido de ser e, vá lá, uma sutil mensagem sobre nossa relação com a tecnologia - algo fresco lá no começo dos anos 1980, mas já bastante gasto em 2010 -, Tron: O Legado, co-produzido por Lisberger, mas dirigido por um jovem diretor que tinha apenas 8 anos quando o primeiro filme foi lançado, será para sempre lembrado como um filme-design. Ou, mais preciso ainda, um filme-design-sexy. E não, não há nada de mal nisso.

Joseph Kosinski, o diretor desta superprodução, estreia no comando de um longa-metragem. A categórica escolha de seu nome se deve ao fato de que seu currículo é meritório em dirigir trailers de games badalados como Halo 3 e Gears of War. Em outras palavras: Kosinski não é muito acostumado a contar histórias, mas sabe lidar com computação gráfica como poucos profissionais do mundo. A trama em si é toda construída pelos roteiristas Edward Kitsis e Adam Horowitz (autores de vários episódios de Lost) e, claro, por essa entidade maior chamada Disney que, talvez prevendo que Tron: O Legado possa se transformar em algo próximo à saga Star Wars (despretensão não é o forte aqui), coloca como fundamento da história a o desenvolvimento da relação pai-e-filho.

Jeff Bridges, que lá nos anos 1980 ainda dava pinta de garotão com seus cabelos levemente cacheados, faz uma paródia de si mesmo como o "mestre zen" preso em uma realidade virtual que, apesar de ter sido sua cria, não mais lhe diz respeito. Aliás, há uma conveniente piada com a "coisa zen" do "Dude" que serve como ótimo deslocamento do ator diante de seu personagem, e alivia um pouco a pressão de toda a seriedade pós-apocalíptica do filme. Mas Bridges, além de Obi-Wan Kenobi, é também Darth Vader. Explica-se: o ator se duplica no filme como Kevin Flynn, o usuário que programou aquele universo, e Clu, um programa codificado por Flynn, criado à sua própria imagem para, tal qual um Jesus, construir ele próprio o sistema perfeito, sem bugs, vírus ou pecados. Não sabe ele que a procura pela perfeição está a sempre um passo do desvio de conduta.

Sam (um Garrett Hedlung que cumpre bem seu papel) é, portanto, o novo Luke Skywalker cuja força interna ele só vai descobrir no momento certo. Ao cruzar esse portal meio buraco de Alice, meio Caverna do Dragão, ele vai logo conhecer uma moça de impactantes olhos azuis. Na sequência do raciocínio, Quorra (uma Olivia Wilde que sabe brigar com estilo), a única personagem feminina relevante da trama, se projeta como uma possível candidata a Princesa Léia do gênero ficção científica - ainda que sua performance de combate esteja mais próxima da Trinity de Carrie Anne Moss em Matrix. Discípula e única aliada de Kevin Flynn, Quorra surge em cena como mais um programa, mas logo se revela como peça-chave de todos os conflitos da trama.

Kevin envelheceu tal como Jeff Bridges. Já Clu tem a mesma idade que o ator tinha no filme de 1982. E não há botox, cápsulas de colágeno e Dr. Hollywood que consiga fazer o que a computação gráfica faz. Eis então que, graças a softwares, vemos o oscarizado Bridges interpretando ele mesmo em seus 30 e poucos anos, sem rugas, marcas do tempo e com uma expressão um tanto travada pelas limitações de tudo aquilo que no lugar de criar, emula. Clu é Jeff Bridges sem vícios e, portanto, reproduz bem essa ideia de estamos diante de um ator que perdeu sua alma ao se transformar em um programa de computador.

O inevitável reencontro entre pai e filho se dará, portanto, nesse ambiente desenhado por luzes, um tipo de Império Romano com arquitetura de laboratório espacial, se é que tal coisa existe. Nessa terra cuja interação se dá apenas entre programas, Clu é imperador e, fazendo jus ao posto,se entretém assistindo a duelos desses novos gladiadores digitais, cujas espadas e escudos são motos e discos de memória que vão e voltam como bumerangues em batalhas sempre fatais para algum dos envolvidos.

Não é preciso ser um perito em cinema para saber que são justamente essas cenas que farão computar a esperada boa bilheteria do filme. Nesse aspecto, Tron: O Legado acerta lindo em seu objetivo. E lindo aqui não é apenas um adjetivo que caiu de pára-quedas no meio da sentença. O filme é belo e, como pontua o filósofo Umberto Eco, belo é um conceito que há séculos vem sendo incrustado em nosso inconsciente como sinônimo de bom. Portanto, sem medo de incorrer em um erro socialmente histórico, Tron: O Legado, é bom porque é belo. Ou, como diria outro teórico da modernidade, Marshall McLuhan, se "o meio é a mensagem", o roteiro deste novo título da Disney é sua própria e bem trabalhada imagem.

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