Selma M. Ferreira Lemes, especialista em arbitragem
Marcela Mourão
A advogada Selma M. Ferreira Lemes é um dos nomes mais recorrentes no Brasil quando o assunto é arbitragem internacional. Tendo integrado a Comissão Relatora da Lei de Arbitragem, tem no seu currículo experiência com arbitragem desde 1983 e um estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional, em 1990. Autora do livro "Árbitro. Princípios da Independência e da Imparcialidade", ela destaca, na entrevista a seguir, como está o Brasil no contexto da arbitragem internacional e quais os problemas que os empresários brasileiros ainda enfrentam.
Terra: Como funciona a arbitragem internacional no Brasil?
Selma Lemes: A lei brasileira dispensa o mesmo tratamento para a arbitragem nacional, doméstica, à internacional. Na lei não há distinção, ou melhor, não há dispositivos especiais para regular a arbitragem internacional e isso não representa nenhum demérito ou fator impeditivo de utilização da arbitragem. É uma opção do legislador. Temos a lei holandesa, uma das mais específicas sobre arbitragem, a recente lei espanhola de 2003 que também só dispõem sobre arbitragem doméstica.
Por outro lado, há leis que estabelecem a dicotomia, no sentido de dar um tratamento especial para a arbitragem internacional, permitir que as partes excluam qualquer possibilidade de recurso da sentença arbitral proferida e outras particularidades, tais como a legislação suíça, francesa, portuguesa e a recente lei chilena de arbitragem comercial internacional.
Desse modo, a lei brasileira esclarece que arbitragem cuja sentença arbitral seja proferida no território nacional é considerada brasileira, independentemente da matéria discutida e se é originária de contrato internacional ou não.
O que permite que um país possa ser considerado local adequado para sediar arbitragens é, em primeiro lugar, a segurança jurídica, vale dizer, que os dispositivos legais sejam utilizados corretamente e que tenha um judiciário que, por meio da jurisprudência deixe claro como se deve interpretar a lei e fazer valer os princípios e conceitos arbitrais, além de dar sustentáculo à arbitragem quando necessária medida judicial de apoio seja na fase pré-arbitral, durante a arbitragem e na fase pós-arbitral.
Terra: Qual a maior dificuldade da arbitragem internacional?
Selma Lemes: Geralmente, os problemas surgem com cláusulas arbitrais que não foram bem redigidas, como, por exemplo, não esclarecem como instituir a arbitragem, indicam instituição arbitral com denominação equivocada, etc. Isso dificulta o regular processamento de uma arbitragem, pois quando surgida controvérsia, não se sabe o que as partes pretendiam. Neste sentido, deve-se perquirir a vontade das partes e isso procrastina a instituição da arbitragem. Às vezes, terá que ser adotada providência judicial para instaurar a arbitragem e se a parte estiver no exterior será necessário citá-la por carta rogatória.
Em outros casos, o contratante brasileiro aceita a indicação de instituição no exterior para administrar a arbitragem sem se preocupar em verificar os custos que isso implica e, quando precisar instituir a arbitragem ficará surpreso com os dispêndios que deverá assumir.
Terra: Onde os empresários brasileiros devem ficar alerta, tomar atenção para não serem prejudicados?
Selma Lemes: O mais importante é estar consciente do que está previsto no contrato e saber a abrangência do que está se comprometendo. Deve analisar a conveniência em indicar a administração da arbitragem no exterior, deve conhecer a instituição arbitral indicada, perquirir sobre os seus custos, etc. Deve, também, conhecer a lei aplicável, que não necessariamente será a brasileira e conhecer a lei processual do país sede da arbitragem. Evidentemente que para isso deve estar assessorado por um advogado.
Quando estiver participando de arbitragem com sede no exterior, não deixar de ter um advogado brasileiro assessorando o colega no exterior. Ao indicar um árbitro, verificar se esse árbitro, primeiramente e antes de tudo, conhece as práticas arbitrais, e que, preferencialmente conheça o seja originário de país que perfilha o civil law (direito romano-germânico), posto que assim sendo, terá mais facilidade de entender o nosso pensar e agir (não que isso seja uma regra), dar preferência à arbitragem de mais de um árbitro. Aceitar árbitro único somente se o valor envolvido justificar. Aqui vale o ditado, "três cabeças pensam melhor do que uma"; indicarmos mais nossos vizinhos latino-americanos que conheçam arbitragem como árbitros, pois além de serem latinos como nós, perfilham também o civil law.
Terra: Como funciona a escolha do (s) árbitro (s) se o processo ocorre em um outro país, já que o árbitro tem que ser da confiança de ambas as partes? Existe alguma maneira ou alguma assessoria para orientar os empresários brasileiros?
Selma Lemes: Primeiro, deve ser observado o que as partes avançaram a respeito. As leis estabelecem como critério geral os princípios da independência e imparcialidade dos árbitros. Devem observar a lei do local da arbitragem e, especialmente no caso de arbitragem institucional verificar o que dispõe o regulamento da instituição indicada. Os regulamentos geralmente esclarecem que os árbitros devem ser independentes (não ter vinculação com as partes) e imparciais (não ter interesse no resultado da controvérsia e decidir de acordo com o seu livre convencimento).
As partes, em arbitragens internacionais, têm liberdade de indicar árbitros, observando, como disse, o regulamento. Podem estabelecer, em arbitragens com três árbitros, que o presidente seja de nacionalidade diferente das partes, podem deixar que a instituição indique os árbitros, etc. Geralmente as instituições arbitrais solicitam que o árbitro indicado responda um questionário no qual ele tem o dever de revelar qualquer fato que possa gerar falta de independência e imparcialidade, não somente a seu juízo, mas também aos olhos das partes.
Terra: De que forma se executa uma sentença arbitral estrangeira no Brasil?
Selma Lemes:O capítulo VI da lei regula a questão. Uma sentença arbitral expedida no exterior, para ser homologada e executada no Brasil deve ser submetida a um processo de homologação para obter o exequatur (autorização da execução) do STF. Serão verificadas questões de forma e se a decisão arbitral não fere a ordem pública brasileira. O judiciário não verificará se a sentença arbitral estrangeira decidiu corretamente a controvérsia ou não. O STF não avaliará o mérito da questão. Isso se denomina juízo de delibação.
O Brasil ratificou importantes Convenções Internacionais na área, entre elas, a conhecida Convenção sobre Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras firmada em Nova York, em 1958. O Brasil ratificou-a em 2002, e isso é muito importante para o Comércio Internacional, pois essa Convenção é considerada a convenção de direito internacional privado com maior adesão no mundo. Ela possui dispositivos importantes que homogeneízam a arbitragem, não apenas quanto ao reconhecimento da sentença arbitral estrangeira, mas também para dispor sobre outros assuntos, tais como o efeito vinculante à cláusula compromissória, tal como regulado no seu art. III, a aplicação da lei mais benéfica à arbitragem (art. VII), etc.
Terra: Como está o Brasil em relação à utilização e desenvolvimento da arbitragem. Pode-se traçar paralelos com os Estados Unidos, Europa e América do Sul?
Selma Lemes: Por integrar o Grupo Latino-Americano da Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional (CCI) e ter participado da reunião ocorrida em agosto passado em Paris, ouvindo nossos colegas de outros países latino-americanos, fiquei surpresa com o nosso avanço. A lei de arbitragem estará completando 8 anos de vigência no dia 23 de novembro próximo e parece-me que fizemos em 8 anos o que não foi feito em 80. A lei é moderna, inovadora em diversos aspectos, enaltece o direito de escolha do cidadão, dá-lhe direitos mas exige em troca responsabilidade, enfim, observou ao que havia de mais importante para ser regulado em texto legal adaptando às peculiaridades do sistema jurídico brasileiro.
Com efeito, vimos nossos colegas latino-americanos referirem-se a problemas na legislação e entendimentos do judiciário que para nós estão totalmente superados. Nossa jurisprudência arbitral é profícua em várias áreas. Os juízes, consentâneos com a lei, reconhecem a possibilidade de interpor medidas cautelares antes da arbitragem e determinam que as partes, em seguida, instituam a arbitragem.
No Brasil, pode ser árbitro um estrangeiro, algo que é vedado em outros países, nossa lei prevê a instituição da arbitragem imediatamente quando temos todos os elementos para isso e mesmo que haja a resistência de uma parte a arbitragem será instaurada e, tal fato foi reconhecido pela mais alta Corte de Justiça, o STF, enfim, com a ajuda do Judiciário brasileiro estamos andando muito rapidamente, bem como do executivo e legislativo com a aprovação e vigência interna de Convenções Internacionais. É lógico que este processo de renovação não tem fim, como tudo na vida, mas para quem estava na "idade da pedra" (antes da Lei) e agora, oito anos depois se encontra inserido no contexto internacional nivelando-se entre as legislações modernas e que realmente são eficazes, é algo bem alvissareiro.
Nos Estados Unidos, há leis estaduais que regulam a matéria e a lei federal aplicável em matéria de arbitragem internacional, acrescentando as peculiaridades de um sistema (common law) que difere do nosso (civil law), mas que tem incorporado as convenções internacionais da área. Na Europa as legislações são praticamente homogêneas. A França, em termos de arbitragem internacional é onde encontramos uma das mais fartas jurisprudências das Cortes Oficiais, que muito contribuem para a fixação e modernização de conceitos. O Direito da Arbitragem francês é fonte constante de pesquisa para nós, brasileiros. A Espanha, como referido acima, em dezembro de 2003 vem de aprovar uma legislação muito interessante.
É importante salientar que a maior parte das legislações tem como ancestral comum a Lei Modelo de Arbitragem Comercial Internacional, que se trata de um texto de lei para servir como modelo (não é um tratado internacional) para os países que queiram rever seus textos internos. Ela foi gerada na Comissão das Nações Unidas para o Desenvolvimento do Direito Comercial Internacional (conhecida pela sigla em inglês UNCITRAL).
Terra: O que pode ser feito para melhorar a utilização da arbitragem interna e internacional?
Selma Lemes: Costumo dizer que a arbitragem para poder se desenvolver e perpetuar na sociedade como meio eficaz de solução extrajudicial de controvérsias está alicerçada em quatro pilares:
1) segurança jurídica, que só pode ser outorgada pelo judiciário referendando os conceitos e institutos arbitrais.
2) difusão cultural, no sentido de difundir na sociedade civil e de explicar o que é a arbitragem. Esclarecer que pode ser utilizada em tudo que pode ser objeto de contratos, mas atentando para as peculiaridades da situação.
3) conscientização dos advogados: estamos melhorando mas ainda há muito desconhecimento sobre as particularidades do instituto jurídico da arbitragem, o que é normal, pois até há pouco tempo, a arbitragem não era tratada como uma disciplina a ser estuda nas faculdades de direito. Os advogados são treinados para os embates forenses e conhecem as ferramentas do processo judicial e que em nada se afeiçoam com as técnicas arbitrais, que privilegiam a informalidade, a flexibilidade, observando os princípios da defesa e da igualdade de tratamento, tudo com o objetivo de obter uma decisão justa e rápida.
4) manutenção de regras flexíveis: não se pode permitir que práticas utilizadas no processo judicial sejam levadas e contaminem a instância arbitral.
Quanto à área internacional, seria muito bom se incentivássemos e trouxéssemos a sede de arbitragens decorrentes de contratos internacionais para o território nacional, pois isso poderia representar o ingresso de divisas, gerar empregos, etc. Temos Câmaras e Centros de Arbitragens que administram processos arbitrais com profissionalismo e lisura, com árbitros capacitados, as sentenças arbitrais são proferidas com muita qualidade, e quando são contestadas no judiciário por meio de ação de nulidade de sentença arbitral são quase sempre mantidas. Enfim, precisamos divulgar isso tudo. Aqui já se pratica a arbitragem na área empresarial interna e internacional com qualidade e profissionalismo e a custos muito menores se comparados com o exterior.
Não entendo que seja hora de alterar a lei brasileira para incluir um capítulo sobre arbitragem internacional. A lei vem cumprindo seu papel de regular a matéria. Precisamos é consolidar os seus conceitos e difundir a técnica arbitral.
Terra: Por fim, o processo de arbitragem é tido como ágil, então ele vai contra o famoso dito popular de que "a Justiça tarda, mas não falha", no que se refere à demora?
Selma Lemes: O procedimento arbitral é mais célere e ágil, pois os árbitros têm maior disponibilidade de tempo e, também, muitas vezes, por ser especialista na matéria controvertida. Geralmente uma arbitragem, mesmo complexa, leva em média sete meses para ter a sentença arbitral proferida. A lei menciona que quando nada for disposto pelas partes a sentença arbitral deve ser proferida no prazo de seis meses, a partir do tribunal arbitral constituído. Comparável com o tempo para se ter uma sentença proferida pelo Judiciário, que dependendo do caso e local poderá durar até três anos para uma sentença (na primeira instância) ser proferida, não resta dúvida, que a arbitragem pode representar uma boa alternativa, em especial para os contratos comerciais e questões cíveis em geral.
Ademais, não se pode esquecer que no judiciário há uma pletora de recursos que procrastinam a decisão final por muitos anos. Na arbitragem não há recurso, somente se for o caso e em situações limitadas a parte que foi vencida pode propor ação de nulidade da sentença arbitral. No meu entender o melhor adágio é aquele citado por Rui Barbosa: "Justiça tardia não é Justiça, é injustiça manifesta".
Redação Terra |