Não dou uma unha para esses médicos tirarem, fala professor

Ítalo Milhomem
Direto de Santa Cruz de la Sierra

"Não podemos reprovar alunos", acusa professor de universidade boliviana
Crédito: Ítalo Milhomem, Especial para o Terra

  Universidades bolivianas que não reprovam, futuros médicos sem condições intelectuais para desempenhar a função e compra de registro profissional na volta ao Brasil. Essas são algumas das acusações feitas por um professor que leciona em universidades particulares da Bolívia durante entrevista ao Terra.

  O docente, que prefere ficar no anonimato para não sofrer represálias, confirma que há pressão para que alunos avancem, mesmo sem qualificação. "Não podemos reprovar. Temos que dar quantos testes forem necessários para passá-los. Tem reitor que chega no início do ano e diz para sermos exigentes nas aulas, mas pegar bem leve nas provas para não desestimular os estudantes brasileiros", relata, fazendo com os dedos o sinal de que a orientação é motivada por dinheiro.

"Não podemos reprovar. Temos que dar quantos testes forem necessários para passá-los"

  Os problemas começam cedo. Somente em Santa Cruz de la Sierra, para onde aproximadamente 2,5 mil brasileiros - a maioria adolescente - vão anualmente cursar medicina, a vida social acaba por retirar o estudo da lista de prioridades. "Eles são muito jovens. Chegam com 17 ou 18 anos e querem se tornar médicos. Qual a maturidade que eles têm? Vão morar fora e quanto menos matérias tiverem melhor. Eles querem festas! Depois ficam nas classes de verão (recuperação), pagam funcionários para alterar as notas entre outras coisas", analisa o professor.

  As transgressões juvenis, porém, não param por aí, ganhando dimensões criminosas em situações premeditadas. Segundo o docente, muitos estudantes passam os anos de faculdade juntando dinheiro para comprar o registro médico na volta ao Brasil. "Não tenho provas porque nunca vi de fato, mas os próprios alunos comentam que custa em média R$ 15 mil e que em determinados Estados da região norte é mais fácil de conseguir".

  Com a imagem manchada, nem quem ensina - e, portanto, convive - confia no desempenho dos pupilos brasileiros. "Se você perguntar o nível dos alunos, não dou uma unha minha para eles tirarem. Dos 300 que entram por semestre, uns 10 são realmente bons e têm o dom para a medicina", dispara.

  "Eu vou reprovar aluno? A vida tem que ensinar. Eles vão aprendendo. Penso que se é de interesse do Ministério da Educação (MEC) do Brasil a formação destes médicos brasileiros que estudam na Bolívia eles deveriam vir aqui para ver de perto como é o ensino, fazer uma pré-avaliação ainda na Bolívia para só depois fazer o teste no Brasil", conclui o professor, que depois minimiza. "Muitos já têm graduação na área de saúde e vêm para a Bolívia focados em se formar e ser um bom profissional".

"(Registro) custa em média R$ 15 mil e em determinados Estados é mais fácil"

Alunos reforçam acusações
  Estudantes ouvidos pelo Terra sobre as acusações do professor confirmaram algumas práticas. "Realmente já teve um caso destes (de compra de nota) aqui na Ucebol, mas o aluno foi expulso", diz um acadêmico da Universidade Cristiana da Bolívia que pediu para não ser identificado.

  "Muitos não estudam e pagam para serem aprovados. Tem acadêmico do 8º e 9º período que não sabe absolutamente nada de medicina porque sempre aprovou com nota mínima ou até mesmo pagando para isso. Tem casos de alunas que saem com docente para passar", afirma um estudante de medicina da Unifranz.

Ucebol afastou 10 professores em 2011
  O Terra procurou as universidades de Santa Cruz de la Sierra para repercutir as acusações. Até o fechamento da matéria,

apenas a Universidade Cristiana de Bolívia (Ucebol) havia se manifestado. Segundo Rubén Darío Méndez, chefe de relações públicas da instituição, "é difícil estabelecer culpados" nesses casos

  "Fazemos todo o necessário para prevenir tais ocorrências. Mas os alunos, especialmente os brasileiros, acabam promovendo esse tipo de ato e depois voltam ao Brasil, retornando apenas no começo do semestre seguinte para se matricularem. Depois aparecem os problemas de reprovação nos exames dos CRM", observa.

  Méndez, no entanto, não alivia para o lado dos docentes. "Há brasileiros que promovem esses atos, mas isso não significa que os professores não fazem parte da corrupção. Ano passado, o reitor retirou cerca de 10 professores acusados de corrupção após uma investigação".

  "A corrupção está afetando governos, instituições, organizações, associações, empresas, e em todos os níveis. Temos que combater esse mal", finaliza Méndez.

Conselho desconhece existência de fraude
  O Terra ouviu Gerson Zafalon, representante do Conselho Federal de Medicina do Brasil, sobre as acusações de venda de registro de médico, facilitações no exame de revalidação do diploma e suspeita de falta de qualidade no ensino de medicina na Bolívia. De acordo com ele, não há irregularidades registradas nos conselhos regionais. "Não temos poder de polícia. Os conselhos apenas registram os diplomas dos graduandos de medicina que se formaram no Brasil e em outros países para realizarem a prova de revalidação. Nós verificamos a procedência do diploma, se ele é fiel e legal. Verificamos todos! Se detectamos qualquer falsidade, acionamos a Polícia Federal. Não existe venda de registro médico, mas pode ser que algum diploma muito bem falsificado possa ter passado despercebido", explica.

"A única coisa que podemos fazer é a revalidação, de modo que eles reflitam e melhorem o ensino lá (Bolívia)"
Gerson Zafalon, representante do Conselho Federal de Medicina

  Gerson afirma ainda que não há como interferir na soberania de outros países, por isso não tem meio de fiscalizar a qualidade do ensino no Exterior. "Fazemos nossa parte e colaboramos com o governo. São poucas escolas que formam bons profissionais lá na Bolívia e são as universidades públicas. Nessas existem cerca de 20 brasileiros em 2,5 mil estudantes. Como podemos interferir? A única coisa que podemos fazer é a revalidação, de modo que eles reflitam e melhorem o ensino de medicina lá, porque saberão que os alunos não vão passar no teste aqui", conclui.

  Sobre o aumento do número de médicos que passam na revalidação, Zafalon comenta que "se não é normal, se é algo suspeito, deve ser investigado". "Cerca 43% dos alunos que fizeram o teste nos últimos dois anos na UFMT passaram. O diretor do curso disse que é por conta dos cursinhos preparatórios".

  Segundo estimativa do Conselho Federal, existem, pelo menos, 35 mil estudantes brasileiros cursando medicina na Bolívia nas cidades de Santa Cruz de la Sierra, Cochabamba e La Paz. "Não somos contra o exercício da profissão de médicos formados fora do País. Queremos que todos os diplomas sejam revalidados, mas a nossa preocupação também é a de representar a voz da sociedade brasileira. Se houvesse uma revalidação automática, o risco ficaria para o povo brasileiro. Nossa posição é que eles podem exercer a medicina no Brasil, desde que tenham uma preparação técnica. Queremos que todos os diplomas sejam revalidados, sem privilégio para ninguém".

  Até o fechamento desta matéria, a Polícia Federal não tinha respondido sobre a existência de investigações. As universidades bolivianas também não se manifestaram a respeito das acusações de venda de notas.